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Coronavírus: sem merenda nem assistência, ensino público remoto frustra estudantes e deixa famílias desamparadas

'A escola é muito mais do que transmissão de conhecimento e de conteúdos. Quando a gente pensa num país tão desigual, o acesso à escola tem a ver com o acesso à alimentação escolar, diz especialista em educação
Emerson Ferreira está aproveitando a quarentena estudando para o vestibular, mas diz que videoaulas são insuficientes. Foto: Jorge William / Agência O Globo
Emerson Ferreira está aproveitando a quarentena estudando para o vestibular, mas diz que videoaulas são insuficientes. Foto: Jorge William / Agência O Globo

BRASÍLIA - A pandemia do novo coronavírus levou à suspensão das aulas presenciais em todo o Brasil. Para os 38,7 milhões de estudantes da rede pública, porém, as escolas não têm oferecido uma estrutura remota para prover a assistência diária de costume, como alimentação, assistência aos estudantes com deficiência e aulas preparatórias para o vestibular .

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A função social da escola ficou evidente em tempos de pandemia, e a suspensão das aulas presenciais, necessária para conter a disseminação do vírus, criou um vácuo que o poder público não conseguiu ocupar em tempo hábil.

— Com certeza a escola é muito mais do que transmissão de conhecimento e de conteúdos. Quando a gente pensa num país tão desigual, o acesso à escola tem a ver com o acesso à alimentação escolar, a materiais escolares, a um conjunto de políticas sociais que muitos alunos e alunas acessam por meio da escola — explica Denise Carreira, doutora em Educação pela USP. — A escola pública sobretudo é o espaço do encontro da diversidade. A escola é um espaço de apoio, de encontro, para pessoas com deficiência, por exemplo, para todas as diferenças.

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No início do mês em São Paulo, a Justiça determinou que o governo estadual e a prefeitura forneçam o custeio da merenda para todos os alunos, e não apenas dos integrantes de programas sociais, como havia sido feito.

No Rio de Janeiro, a prefeitura ofereceu um cartão de alimentação apenas para cadastrados no Bolsa Família ou no Cartão Carioca. No Distrito Federal, o governo distribuiu um cartão alimentação para beneficiários do Bolsa Família.

Na segunda semana de abril, o governo federal sancionou uma lei que prevê a distribuição dos alimentos da merenda escolar às famílias dos estudantes da rede pública, mas a medida ainda não chegou na ponta.

Profissionais de educação e pais ouvidos pelo GLOBO apontam que as ações não atingem todos os alunos necessitados e, em um momento de queda no rendimento das famílias, seus valores são insuficientes.

Já no final do ciclo de estudos, alunos que se preparam para o vestibular também perderam o apoio presencial de professores. Em três estados não há nenhuma forma de ensino à distância, e só em 16 há videoaulas. Mesmo nesses locais, alunos perderam semanas aguardando até que as escolas se organizassem.

Além disso, o ensino remoto tem limitações: escolas não contam com canais de comunicação eficientes para tirar dúvidas, segundo os estudantes, e o conteúdo lecionado diminuiu. Muitos estados optaram por transmitir aulas pela TV, deixando de lado as necessidades individuais de cada sala de aula.

—  A educação à distância é um recurso, mas tem que ser vista com muito cuidado , ela não substitui a educação presencial. Temos que manter o isolamento social o máximo possível, mas após a pandemia é fundamental retomar a educação presencial. Mais do que nunca a sociedade e a família estão vendo a importância de que a educação presencial exista e seja fortalecida — opinou Denise Carreira.

O GLOBO ouviu famílias e alunos de diferentes classes sociais e faixas etárias sobre como a falta de estrutura das escolas para atendê-los remotamente tem afetado suas vidas.

'Como não tem lanche toda hora, eles pegam um pouco de arroz e feijão e comem'

Nas panelas da casa, o arroz e o feijão são os únicos alimentos disponíveis para sustentar a família. Maria Antônia Silva, 38 anos, vive com os quatro filhos, dois sobrinhos e a nora em um imóvel alugado por R$ 450 na cidade de Samambaia, no Distrito Federal.

Maria Antonia Silva com os filhos: Natan Silva (12 anos), Christian Silva (10) e Brian Silva (4 anos). Em isolamento social, ela não tem condições de alimentá-los Foto: Jorge William / Agência O Globo
Maria Antonia Silva com os filhos: Natan Silva (12 anos), Christian Silva (10) e Brian Silva (4 anos). Em isolamento social, ela não tem condições de alimentá-los Foto: Jorge William / Agência O Globo

As três crianças mais novas, Natan, 12 anos, Christian, 10 anos, e Braian, 4 anos, costumavam fazer todas as refeições na escola, aliviando significativamente as despesas, mas com as aulas suspensas, a segurança alimentar da família ficou em risco.

Desde o dia 10 de março, quando parou de trabalhar fazendo faxinas devido ao novo coronavírus, Maria Antônia precisa lidar com a matemática difícil de conciliar: a única renda de R$ 500, que recebeu de auxílio do governo do Distrito Federal e do Bolsa Família, precisa pagar as contas da casa.

— O dinheiro vai quase todo no aluguel. Eu fiquei desesperada, sozinha, com quatro filhos e chega a hora que vou procurar algo para eles comerem e não tem. Já teve vezes que chorei. Não é só agora que eu passo por crise, agora aumentou, mas antes já era difícil. Mas como eles comiam na escola, amenizava um pouco — conta Maria Antônia.

Duas semanas após aprovação no Congresso, o governo sancionou na quarta-feira um projeto de lei que prevê que durante o período em que as aulas estiverem suspensas em razão do estado de emergência em saúde, pais e responsáveis por crianças matriculadas nas escolas poderão receber alimentos que seriam destinados à merenda escolar. A medida pode beneficiar famílias como a de Maria Antônia.

— Em casa, o tempo todo eles querem comida. Como a gente não tem isso de ter lanche toda hora, eles vão lá pegam um pouco de arroz e feijão e comem — lamenta.

'Pais não têm condições de auxiliar as crianças pedagogicamente'

Aluna do quinto ano do ensino fundamental de uma escola pública de Ceilândia, Vitória Gomes, 13 anos, diz brincando à mãe que conseguiu ultrapassá-la nos estudos. Solange Gomes, 48 anos, conseguiu avançar somente até o quarto ano. O feito já seria considerado significativo de qualquer forma, mas, para a mãe, ganhou ainda mais importância pelo fato de Vitória ter transtorno do espectro autista.

A cozinheira Solange Gomes com a filha Vitória Gomes, 13, que tem transtorno do espectro autista. A mãe não tem condições de manter a filha fora da escola especializada durante o isolamento social. Foto: Jorge William / Agência O Globo
A cozinheira Solange Gomes com a filha Vitória Gomes, 13, que tem transtorno do espectro autista. A mãe não tem condições de manter a filha fora da escola especializada durante o isolamento social. Foto: Jorge William / Agência O Globo

— O estudo é a coisa mais importante que existe —  sentencia Vitória dando um pausa nas atividades diante do computador.

Desde que suas aulas foram suspensas a menina passa as tardes na internet. Segundo a mãe, essa é a única maneira de distraí-la desde que a rotina escolar foi quebrada. Cozinheira, Solange está sem trabalhar há quase um mês e teme que a falta de dinheiro para as contas, incluindo o boleto da internet, prejudique o pouco conforto que tenta oferece para o desenvolvimento da filha na ausência da escola.

— É muito bom ver que ela estava se desenvolvendo. Tivemos o diagnóstico dela somente aos cinco anos e somente quando ela começou a estudar com uma professora especialmente para auxiliá-la é que ela começou a se desenvolver, escrever, ler — conta a mãe.

Dados do Censo Escolar mostram que em 2019 o Brasil tinha cerca de 1,3 milhão de alunos com deficiência ou transtornos globais matriculados nas escolas públicas e privadas do país, seja em classes comuns ou especiais.

Taíse Oliveira, 38 anos, é uma das professoras de Vitória e, embora pondere que a suspensão de aulas é fundamental num momento como esse —  inclusive para esses alunos, que costumam ter a saúde mais frágil — , afirma que os prejuízos podem ser grandes para os estudantes, já que as escolas não pensaram em alternativas para esses estudantes.

— Às vezes os pais não têm condições de auxiliar pedagogicamente a criança em casa. Na escola o ensino é direcionado para essas crianças. Em relação à internet, por exemplo, a gente aprofunda o conteúdo pedagógico, dentro do currículo, não é só um deleite. É claro que essa interrupção pode causar um prejuízo, na escola há outros trabalhos além do atendimento especializado, como o reforço escolar. Tem famílias nas quais o pai e a mãe são analfabetos — argumenta.

Videoaulas são insuficientes na preparação para o vestibular

O estudante da rede pública Emerson Ferreira, 16, ficou sem aula cerca de 15 dias, desde meados de março. Ele mora no Cruzeiro, bairro de classe média perto de Brasília (DF).

Emerson está no terceiro ano e quer cursar engenharia mecatrônica na faculdade. Como "ninguém sabia como ia ser" nem quanto tempo iria durar a quarentena, disse que tratou o período mais como "férias antecipadas", já que não tinha se planejado para estudar em casa. As videoaulas vieram só em abril, mas são insuficientes, diz ele.

O estudante Emerson Saga está aproveitando a quarentena para estudar para o vestibular de engenharia mecatrônica Foto: Jorge William / Agência O Globo
O estudante Emerson Saga está aproveitando a quarentena para estudar para o vestibular de engenharia mecatrônica Foto: Jorge William / Agência O Globo

— Pra quem está prestando Enem, como eu, é bem complicado. Videoaula é no máximo uma hora. Estou fazendo muita tarefa física mesmo, porque tenho apostila.

Sua maior dificuldade e de outros alunos é solucionar dúvidas. Ele diz que a escola deveria ter implementado algum e-mail ou canal para tirar dúvidas direto com os professores.

— A gente tenta fazer os exercícios e, quando eu não sei, eu tenho que ficar conversando com os outros alunos, a gente tem que adivinhar como fazer.

'O semestre praticamente foi embora', diz vestibulando

Morador da Sol Nascente, segunda maior favela do Brasil localizada no entorno de Brasília (DF), Wesley Martins, 17, estuda para entrar em uma faculdade de medicina. Acompanhando as notícias da pandemia, sua motivação para se tornar médico aumentou ainda mais.

Com as aulas interrompidas, porém, ele perdeu um importante apoio da escola: um cursinho pré-vestibular aos sábados, que ia das 9h às 17h. Até agora, instituição não ofereceu uma substituição por videoaulas. As aulas regulares tampouco foram retomadas.

Só professores de duas matérias, filosofia e sociologia, têm feito videoaulas, e por vontade própria. Não há um planejamento da escola para acompanhar quem, como ele, depende da escola para ter um bom resultado no Enem no fim do ano.

O governo do Distrito Federal está oferecendo aulas através da TV Justiça, medida que o Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF) aponta como ineficaz, já que não substitui um contato entre professor e aluno, ainda que seja virtual, e não atende todos os estudantes.

— Estão fazendo aula on-line, mas não é a mesma coisa para tirar dúvidas, não explicam a matéria toda — afirma. — A representante da sala envia as dúvidas para os professores, mas não está funcionando bem. É horrível.

Sua mãe, Raquel da Silva, tem duas filhas mais novas e já sente no bolso o impacto da ausência da merenda oferecida pela escola para as duas. Mas o maior prejudicado pela falta de estrutura da escola é Wesley, na opinião dela.

— O semestre praticamente foi embora — lamenta o adolescente.

Impacto na periferia é ainda maior, diz estudante

No Ceará, professores da rede pública foram orientados a passar atividades para os alunos, mas não há um planejamento para manter o ensino à distância. Na escola de Roberto Cesar, 17, não há videoaulas, mas os alunos são cobrados em tarefas e provas on-line.

— Tem conteúdo que a gente nunca viu. Tem professores sensatos que estão passando conteúdo que já passaram, outros estão passando conteúdo novo. O problema é que, quando voltarem aulas presenciais, eles não vão retomar esse conteúdo.

Roberto mora em Planalto Ayrton Senna, na periferia de Fortaleza, e quer cursar enfermagem na faculdade. Ele defende o adiamento da data do Enem, já que, nesse semestre, não está conseguindo levar adiante os estudos com a mesma qualidade que tinha na escola.

— A gente tá muito perdido em questão de estudo. Principalmente quem é da periferia. Quem tem condição de pagar um cursinho online é menos difícil, mas quem é pobre não consegue isso.

Roberto aponta, também, que a situação é muito pior no caso de colegas seus que não têm internet em casa. Muitos estudantes das classes D e E dependem de pacotes de internet via celular para estudar, insuficientes para o ensino à distância. No Nordeste, apenas 57% dos domicílios têm acesso à internet, segundo a pesquisa TIC Domicílios de 2018.