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Matheus Pichonelli

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Revolução' do novo ensino médio era um jogo de RPG com brigadeiro gourmet

Projeto de novo ensino médio deve ser suspenso pelo governo federal - Freepik
Projeto de novo ensino médio deve ser suspenso pelo governo federal Imagem: Freepik

Colunista do UOL

05/04/2023 04h01

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A revolução prometida pelos entusiastas do novo ensino médio é uma aula intensiva de como a teoria das supostas boas intenções educacionais na prática pode ser outra.

Sua implementação, que deveria acontecer até 2024, acaba de ser suspensa, por 60 dias, pelo Ministério da Educação.

O anúncio provocou a ira de entidades privadas, que viam nas mudanças uma oportunidade de negócios, e também do Luciano Huck, apresentador e ex-futuro candidato a presidente — que correu para as redes dizer que, mesmo com a difícil implementação, "não faz sentido retroceder à estaca zero".

Transformada em lei em 2017, a reforma prometia garantir aos estudantes mais tempo na escola e mais autonomia nos estudos. A ideia era oferecer conteúdos mais atraentes e próximos de suas realidades, com a ajuda de itinerários formativos e a liberdade de cada escola criar disciplinas.

O resultado, ao longo do ano-teste de 2022, é que conteúdos tradicionais perderam espaço e os professores ficaram ainda mais sobrecarregados, sobretudo na rede pública.

A desigualdade também aumentou. Enquanto, em algumas escolas bem equipadas e com bons laboratórios, estudantes poderiam dar os primeiros passos em direção à Nasa, em Campinas uma reportagem da revista Exame mostrou que durante uma semana a disciplina obrigatória eram aulas de RPG com professores da rede pública que não tinham o menor preparo para isso. "Virou uma aula com autorização para jogar", resumiu a mãe de um aluno.

Na mesma reportagem um professor da rede estadual da Bahia, formado em Língua Portuguesa, dizia estar dando aula em várias disciplinas fora de sua área para completar carga horária. Uma delas era "A Arte de Morar", uma eletiva de geografia que ninguém sabia dizer exatamente o que significava.

No estado de São Paulo, aulas de química e sociologia deram lugar a disciplinas como "Brigadeiro Gourmet" e "Mundo Pet", como mostrou o professor Fernando Cássio, professor e pesquisador da Universidade Federal do ABC, em uma coluna recente no site da revista CartaCapital.

Segundo ele, há evidências suficientes para afirmar que o novo ensino médio "visa simplificar a formação de uma massa de jovens para um precarizado e plataformizado 'mercado de trabalho' contemporâneo, cristalizando desigualdades de oportunidades entre ricos e pobres".

Uma dessas evidências é o fato de que um dos elaboradores de apostilas oferecidas a professores como apoio curricular era o iFood. "As secretarias de Educação nem se preocupam mais em disfarçar", escreveu.

Há quem veja nas aulas sobre brigadeiro e até de fabricação de sabonetes uma forma lúdica de ensinar elementos de química e biologia. Seria lindo se, conforme lembrou Fernando Cassio na mesma coluna, não fosse o fato de que não há sequer professores de química e biologia em boa parte das escolas públicas do país — isso sem contar laboratórios de ciências, insumos e tempo adequado para a preparação das novas aulas.

Há relatos de que, em muitos lugares, a liberdade para escolher o próprio itinerário é decidida por sorteio para ver quem fica com a vaga do itinerário. As escolas não conseguem atender a demanda e quem não tiver a sorte na roleta é obrigado a tomar outro itinerário, o que em si coloca em xeque a ideia de liberdade de escolha.

É óbvio que os problemas da implementação do novo ensino médio não foram unânimes em todas todas as escolas, o que só agrava a desigualdade entre quem pode e quem não pode cursar o que de fato deseja com apoio, estrutura e profissionais preparados.

No começo dos anos 1990, fazia sucesso entre jovens estudantes do ensino médio uma música de Gabriel, O Pensador, desancando o sistema de ensino no país: "Eu gosto dos professores e eu preciso de um mestre/ Mas eu prefiro que eles me ensinem alguma coisa que preste/ O que é corrupção? Pra que serve um deputado?/ Não me diga que o Brasil foi descoberto por acaso! Ou que a minhoca é hermafrodita/ Ou sobre a tênia solitária./ Não me faça decorar as capitanias hereditárias!"

A música já falava das dificuldades de estudantes conectarem os saberes apreendidos na escola com a vida prática. A questão segue em aberto. Mas ela não será resolvida com uma proposta mirabolante que suprimiu da discussão entidades representativas de alunos e professores e fez coçar as mãos de quem vê na sala de aula uma chance de enriquecer à custa da precarização.

A suspensão não significa que o projeto será enterrado de vez. Pode significar apenas uma pausa para que a rota seja recalculada e o carro, acelerado em breve.

A lição que fica é que não dá para começar o brigadeiro pelo granulado.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL