Não acreditavam em sua bela caligrafia, que as notas de sua prova eram mesmo altas, que não colava e que não bagunçava nas aulas. A imagem do menino negro, pobre, mirrado, irritava o status quo quando não correspondia às expectativas de uma educação pública sofrida e, muitas vezes, racista.
Ao serem promovidas durante décadas, violências diversas contra o desenvolvimento intelectual de meninos e meninas pretos e pretas, perpetuou-se também um genocídio cognitivo, cujo foco era exterminar as mentes daqueles que poderiam contribuir para que seu povo —sua raça, sua gente— fosse preservado e o futuro possível.
Quando uma criança negra diz que só queria que a escola fosse boa com ela, vê-se nitidamente a promoção do ambiente que faz morrer a vontade de aprender, conhecer e buscar os saberes sobre existir no mundo. Como ser vivo no mundo. Negro aluno —primeiro negro, depois, quem sabe, aluno.
Essa realidade reforça o que bem retratou bell hooks (que grafava seu nome com iniciais minúsculas), escritora e um dos grandes nomes da luta antirracista, em sua obra "We Real Cool", dedicada a estudar masculinidades negras: uma realidade imperialista e supremacista na qual meninos negros —futuramente homens negros— serão sempre mais corpo do que mente, de raciocínio mais lento, mais limitado.
No capítulo que se dedica a tratar da escolarização de garotos e homens negros, hooks traz exemplos de escritores que, em seus relatos autobiográficos, tentam se distanciar do estereótipo que lhes foi conferido desde sempre, colocando-os como menos capazes intelectualmente, e relembram o grande esforço que fizeram para ter acesso a alguma educação, ainda que à custa do vigor de mentes curiosas, aptas a receberam a genialidade quando esta não lhes fosse negada por uma educação ainda colonialista.
Eliminar o desejo de aprender e impedir que crianças negras tenham um ambiente propício para desenvolver imaginação e cognição é parte da estratégia racista de uma estrutura social que cinde povo e progresso; que assassina o pensamento para garantir que as gerações futuras vaguem mortas em vida, apáticas, acríticas, marginalizadas e extermináveis.
Ao longo de toda a minha formação, como registrei em coluna passada, deparei com professores revolucionários. Não no sentido ideológico que alguns fetichistas dos "costumes" geralmente apontam, mas no prático. Revolucionários porque conseguiam, dia a dia, promover educação minimamente reflexiva em escolas projetadas para serem quartéis, mas que só alcançaram o semblante do cárcere. Ainda assim, vivi episódios nos quais tentaram me ensinar a desaprender.
Em um deles, lembro sempre, a docente me acusou, diante de toda a sala, de mandar amigas copiarem a lição do quadro para mim. Isso porque, de acordo com ela, a letra em meu caderno era bonita demais para ser a de um menino como eu. Após tantos abalos psicológicos, infelizmente se pode desenvolver certa frieza que beira à indiferença e, com aparente calma, escrevi no canto da folha: "Esta letra é minha, professora".
O racismo, onde quer que esteja, existe para limitar um grupo e impedi-lo de existir ontem, hoje e amanhã. Se o há nas escolas, há genocídio cognitivo de crianças negras impedidas de desenvolver sadiamente o imaginário e potencial genialidade.
Até mesmo quando se consegue sobreviver a um sistema de educação também afetado pelo racismo estrutural, sistêmico, e institucional, a inteligência sempre será colocada em xeque desmedidamente. Um simples descuido gramatical ou uma crítica elaborada dentro das devidas complexidades do argumento são o suficiente para fazer de homens negros adultos novamente meninos numa eterna sala de aula a reprová-los.
"Hoje, muitos homens negros com boa educação sabem que não devem ser pensadores críticos e não tentam ser. Um homem negro, mesmo educado, que pensa criticamente, ainda é considerado suspeito pela cultura dominante", escreveu bell hooks (em tradução minha).
Pois que duvidem de nossas letras, mas não de nossas palavras.
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