Brasil Educação

'Querer ver o Enem antes da aplicação é uma questão política', diz ex-presidente do Inep

Maria Inês Fini, em sua primeira entrevista desde que foi exonerada do órgão, afirma que o exame tem que se modernizar, mas rejeita a acusação de que há 'doutrinação ideológica' na prova
Maria Inês Fini, presidente do Inep durante a gestão de Michel Temer Foto: Jorge William / Agência O Globo
Maria Inês Fini, presidente do Inep durante a gestão de Michel Temer Foto: Jorge William / Agência O Globo

RIO - A ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Maria Inês Fini, ficou à frente do órgão, responsável pelo Enem, por cerca de dois anos e meio. Na opinião da educadora, que participou da criação do  Exame Nacional do Ensino Médio em 1998, o desejo do presidente Jair Bolsonaro de ver a avaliação antes de sua aplicação vai além da segurança do exame, "é uma questão política".

Quando assumiu o Inep, em 2016, Fini afirmou ao GLOBO que queria mudar o Enem. Exonerada da autarquia em janeiro, ela conta à reportagem que sua maior frustração foi justamente não ter conseguido apurar a avaliação de estudantes e instituições. Fini diz que o "Enem é do Brasil" e que para participar da confecção da prova o presidente do órgão precisa ser qualificado tecnicamente.

— Tem que apresentar as credenciais que eu apresentei.

Fini — doutora em Educação, especialista em Currículo e Avaliação e fundadora da Faculdade de Educação da Unicamp — rejeita a acusação de que há "doutrinação ideológica" no Enem e diz que as avaliações do Inep são sempre feitas com base em conceitos científicos.

—  O Enem tem que se modernizar. (Mas) as mudanças não partem da vontade do presidente do órgão, e sim da capacidade e da qualidade do que ele vai propor de maneira participativa e democrática.

A ex-presidente do órgão recebeu com preocupação a fala do ministro Ricardo Vélez-Rodríguez de que pretende mudar a reforma do ensino médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) da etapa. Sobre o futuro do Inep, hoje presidido pelo ex-professor da FGV Marcus Vinicius Rodrigues, diz esperar que o instituto não sofra com a troca de gestão:

— O Inep até hoje resistiu bravamente a todas as mudanças políticas sem perder o foco na sua missão. É isso que eu aguardo.

Em novembro, a senhora disse que o Inep iria investir em um novo modelo para a prova do Enem, assim que fosse aprovada a BNCC. A Base foi aprovada em 4 de dezembro, deu tempo de deixar pronto um novo formato para o Enem?

Não. Há estudos inclusive no Inep sobre a possibilidade de um novo exame, mas, do ponto de vista de conteúdo, não (deu tempo). Até porque, para fazer isso, é necessário validar com o Consed (Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação).  Mas está tudo encaminhado para ser feito, vai depender da nova gestão. As equipes internas do Inep têm posse desses estudos e sabem para onde têm que ir, conhecem a Base. Vai depender da determinação do presidente e do diretor da Diretoria de Avaliação da Educação Superior. Os estudos apontam para uma prova bem articulada tanto com a reforma do ensino médio quanto com a Base Nacional Comum Curricular. Esperamos que seja assim.

Em entrevista ao "Valor", o novo ministro disse que pretende alterar pontos da reforma do ensino médio e da BNCC. Qual é a sua opinião sobre isso?

Eu sou educadora de profissão, estou há muito tempo na educação brasileira. Muita coisa boa se perde de um governo para o outro, muitas se preservam. O sucesso da educação brasileira tem ocorrido na medida em que a gestão da educação consegue preservar valores que foram solidamente construídos pela gestão anterior. Eu, Maria Inês, professora, especialista, pesquisadora, acho que o Brasil viveu nos últimos três anos avanços muito grandes, aprimorando questões da gestão anterior. Por exemplo, a Base começa no governo petista e é aprimorada na gestão do presidente Temer. Ela teve uma participação absurda da sociedade. Eu analiso com bastante cuidado e fico muito preocupada com a declaração do ministro.

Quando assumiu o Inep, em 2016, disse que queria mudar o Enem, porque ele não avaliava o ensino médio. Acha que conseguiu fazer alguma mudança nesse sentido?

A mudança seria feita agora. Você tem que esperar o movimento da sociedade, porque não se trata de um desejo do presidente do Inep ou do ministro. Há movimentos na educação brasileira que precisam ser muito respeitados, e foi o que eu fiz. Enquanto discutimos internamente qual seria uma arquitetura boa, possível, acompanhamos a discussão do Movimento pela Base, participamos dele. Fui da equipe gestora da Base junto ao MEC. E acho que em muito se avançou. Os estados brasileiros, que são os responsáveis pelo ensino médio, consolidaram bastante essa visão da nova Base, fizeram a reformulação do currículo. É algo que a sociedade brasileira fez, representada pelos seus gestores municipais e estaduais, que deveria ser considerado. Isso que fiz quando era presidente do Inep. Lá não definimos política, construímos evidências para que as políticas pudessem ser monitoradas.

Em relação ao Enem, até onde vai a ingerência do presidente na prova?

Eu era de uma postura que me permitia ler a prova, questionar. Todas as provas, não só o Enem. Mas porque eu sou especialista na área,  não só porque eu criei (o Enem), mas porque eu entendo do assunto. Então é muito difícil fazer essa pergunta para mim. Como você, estou olhando, avaliando.  Eu participava de tudo, porque eu sou especialista na área, eu era chefe da equipe técnica. Você tem que se apresentar para as equipes técnicas com a capacidade necessária para fazer isso e foi o que aconteceu. Eu me apresentei não só como alguém que tinha um passado, que criou o Enem ou a matriz do Saeb, tem que apresentar as credenciais que eu apresentei.

A senhora estava na criação do Enem e depois voltou ao Inep em um momento no qual ele já tinha outro formato. Na sua opinião, para onde a prova pode evoluir?

Se seguirmos a BNCC do ensino médio, se seguirmos a reforma, o Enem tem que se modernizar, a sua arquitetura tem que ser outra, o conteúdo tem que ser outro. O Consed tem que aprovar, a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil) tem que conhecer a qualidade de seleção do novo exame.  Há discussões acadêmicas. Não é a vontade do presidente, é a capacidade e a qualidade do que ele vai propor de maneira participativa e democrática. Na academia não existe "eu quero e farei o que quero". O que existe é "aqui está uma ideia que eu demonstro ser melhor que a outra". Esse é o discurso que tem respaldo no mundo inteiro, não só no Brasil. Acho que esse é o caminho que deveria ser feito.

O que considera ser seu principal legado para o Inep?

Eu me orgulho de ter sido chefe das equipes técnicas, de ter emprestado meu talento, minha rotina individual de 14 horas de trabalho por dia, meu entusiasmo, minha inteira dedicação para que o Inep continue sendo um órgão de respeito no Brasil e exterior. Meu legado foi vestir a camisa, respeitar a missão do Inep pela qual ele foi criado, respeitar os servidores.

A senhora teve alguma frustração?

Eu gostaria muito de ter deixado esse modelo novo do Enem já negociado com o Consed e a Andifes. Essa é a frustração. Faltava só um pouquinho, mas a Base precisou do tempo que levou para consolidar a participação do Brasil.

Recentemente, a senhora publicou um artigo dizendo que o Enem não era " nem meu nem seu. É do Brasil". Hoje, acha que o Enem é de algum governo?

O Enem é do Brasil. O Saeb é do Brasil, o Encceja é do Brasil, o Inep é do Brasil. Temos uma história, uma lição constitucional a cumprir, e espero que ela seja mantida.

No ano passado, o Enem foi alvo de críticas por ser "ideológico". Como recebeu essas críticas?

Respondi a todas elas da maneira contundente. Não existe essa perspectiva de doutrinação, o que nós trabalhamos é com a ciência, com a linguagem, com a arte. As pessoas fazem as leituras de todos os textos com os valores da cultura que elas têm dentro delas mesmas. Eu não posso impedir. Eu só posso dizer que todas avaliações que o Inep faz são baseadas em conceitos científicos, filosóficos e artísticos. Não há possibilidade de o Inep fazer coisas de outra natureza.

Não havia a cultura de o presidente da República ver a prova do Enem antes da aplicação. Acha problemático que o atual presidente queira fazer isso? Por quê?

Nem o presidente e nem o ministro da Educação nunca vieram ver a prova, nunca manifestaram nenhum desejo de ver a prova. Em relação à segurança, tenho certeza que, se o presidente for ver a prova, vão dotá-lo de total segurança. A questão não é essa, é muito maior do que isso.  A questão maior é política. Tem que perguntar isso para o presidente, ou para os filhos dele, ou para o ministro, ou para o presidente do Inep, que já disse que o Enem é, sim, do Bolsonaro e que ele vai ver a prova. Não tem que perguntar para mim, tem que perguntar para ele. A segurança é o menor dos problemas.

A senhora teve algum contato na transição e no começo do governo com o ministro Vélez ou membros da nova equipe?

Desde 27 de dezembro até 14 de janeiro eu recebi, a pedido do ministro Vélez, o indicado Marcus Vinicius e apresentei tudo o que ele queria saber. Passei tudo para recebê-lo da melhor maneira possível. Fizemos uma transição muito profissional, atendendo a todas as demandas. Temos três diretores que permanecem: o de estatística, de avaliação do ensino superior e de tecnologia. Os nossos servidores são concursados, da casa, e  vão ajudar o novo presidente a fazer o que tem que ser feito pelo bem do Inep.

Qual é a sua expectativa em relação a essa nova gestão?

Estou observando com bastante cuidado, respeito, e vamos aguardar o que acontece. O Inep é do Brasil, e até hoje resistiu bravamente a todas as mudanças políticas sem perder o foco na sua missão. É isso que eu aguardo.