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Em Desconstrução

Quando a igualdade inferioriza: por que homofobia deve ser crime

Rodrigo Ratier

19/02/2019 14h59

Bandeira do orgulho LGBT (Crédito: quil/Freeimages)

"Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza. E temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza."

Lapidar e certeira, a frase do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos cai bem para refletirmos sobre a controvérsia acerca da criminalização da homofobia. O Supremo Tribunal Federal conclui a partir desta quarta-feira, dia 20, o exame do tema. Na leitura de seu voto, na semana passada, o relator ministro Celso de Mello reconheceu a omissão do estado, que não possui lei específica para punir crimes contra homossexuais, bissexuais e pessoas transgênero. No dia 20, deve concluir seu longo voto, apresentando sugestões para enfrentar o tema.

Criar leis é papel de deputados e senadores. No caso da temática LGBT, aí mora boa parte do problema. As proposições que criminalizam os preconceitos motivados pela orientação sexual e pela identidade de gênero não avançam, muito em razão do conservadorismo do Congresso. A discussão no STF é se o Legislativo fere a Constituição por não criar uma legislação específica – a punição à "discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais" está prevista no artigo 5º da Constituição.

Há um debate bastante válido sobre se o Supremo seria o lugar adequado para decidir o assunto ou se esse é o papel do Congresso. Não é a única polêmica. Há quem não veja – aspas necessárias – "urgência" no assunto. O presidente Jair Bolsonaro tuitou discurso da Advocacia Geral da União contra a criminalização. Na mesma rede social, seu filho 02, o vereador Carlos Bolsonaro, defendeu combater o avanço da pauta LGBT "pois somos todos iguais". E o vice presidente Hamilton Mourão classificou a criminalização como "passo além da necessidade".

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Os contra-argumentos à criminalização – expressos, por exemplo, no texto de Robson Rodovalho, bispo presidente da Igreja evangélica Sara Nossa Terra – vão em dois caminhos. O primeiro no sentido de classificar a criminalização como "domesticação do pensamento dos religiosos no país". Segundo Rodovalho, as "religiões abrâmicas [judaísmo, islamismo e cristianismo] possuem, na sua linha mais tradicional, uma ética sexual muito distinta da ética secular". Para o bispo, "criminalizar a expressão pública desses valores" constitui "ação totalitária", sob "a ameaça da espada da sanção criminal".

A fala de Rodovalho é uma boa oportunidade para ressaltar uma das decorrências do estado laico. Conforme reforçou o ministro Marco Aurélio Mello em 2012, antes de anunciar voto favorável ao fim da criminalização do aborto de fetos anencéfalos, "os dogmas de fé não podem determinar o conteúdo dos atos estatais". Parece ser o caso, também, na discussão sobre a criminalização da homofobia. Com a enorme colher de chá do advogado autor da ação, que defendeu não enquadrar como crime opiniões baseadas em tradições religiosas — desde que não haja intenção de agredir ou ofender.

Outro contra-argumento é citar o número de LGBTs mortos em relação ao total de assassinatos. Em 2018, seriam 445, num universo de 60 mil assassinatos. Assim, concluem os críticos, faz muito mais sentido proteger os héteros, pois esses seriam as verdadeiras vítimas. Ou proteger a todos indiscriminadamente, já que, como diz Rodovalho, "o Brasil é a maior máquina de matar do mundo, sem preferência de orientação sexual".

É curioso como o alcance da lei é uma espécie de argumento self-service dos conservadores: só usam quando convém. No caso do Escola Sem Partido, os defensores do projeto costumam dizer que, se for possível salvar uma criança "do perigo da doutrinação", a iniciativa já terá valido a pena. Para os mesmos conservadores, a mesma justificativa (salvar a vida nem que seja de um único LGBT) não vale quando o caso é a criminalização da homofobia.

Por trás da intenção anunciada da proteção global, suspeito que a ideia seja deixar tudo como está. Já vimos esse filme com outros atores: não é preciso lutar por igualdade salarial entre mulheres e homens porque a carta magna já prevê isso. As cotas raciais no ensino superior são racismo invertido porque há pobres de todas as etnias. E por aí vai, numa sequência de ataques às minorias em direitos como se as medidas de discriminação positiva fossem um "exagero do politicamente correto".

O politicamente correto, é sempre bom relembrar, surgiu para que se trate a todos com o mesmo grau de civilidade. Insurgir-se contra isso dizendo que o "mundo está ficando chato" e apontar dedos para uma suposta " limitação da liberdade de expressão" é também uma leitura equivocada. Não existe direito absoluto. O direito à livre expressão não pode se sobrepor, por exemplo, ao direito à vida – não se pode incitar a violência contra alguém cuja opção sexual te desagrade e justificar que você estava apenas exercendo um direito de opinião. Nesse caso, como em tantos outros, as colisões de direito devem ter consequências previstas em lei.

Retomando Boaventura, me parece que estamos diante de um caso em que a igualdade descaracteriza. A expectativa de vida do brasileiro é de 75 anos. Pessoas trans, porém, podem esperar viver em média apenas 35. Temos falhado em fornecer igualdade a todos os cidadãos. LGBTs precisam enfrentar a violência como todos nós – E (maiúscula proposital) o fato de terem orientação sexual e identidade de gênero sujeitos a preconceitos diversos.

Se as marcas da vulnerabilidade são justamente as ligadas ao gênero, raça, classe social etc., não faz sentido iluminar esses casos e dar a eles mais atenção – com a criação de leis específicas, por exemplo? Qual a dificuldade em reconhecer que essas pessoas precisam mais do estado do que um homem branco, hétero e classe média como eu? Tratamento desigual, nesse caso, não seria um passo necessário para atingir a igualdade?

A igualdade, diz Boaventura, não é incompatível com as diferenças. É possível pensar e sonhar com uma igualdade que reconheça e celebre as distinções – e também com uma diferença que não reproduza as desigualdades. Proteger os mais vulneráveis é uma forma de empatia com quem mais sofre. O problema é que empatia, pensar e sonhar, como se sabe, não são coisas muito populares no Brasil de hoje.

Sobre o autor

Rodrigo Ratier é jornalista, professor universitário, pai de duas, curioso pela vida, entusiasta do contraditório

Sobre o blog

Olhares e provocações sobre a vida cotidiana: família, trabalho, amizade, educação, cultura – e o que vier pela frente

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