Projeto dá aulas gratuitas em Botafogo para quem nunca estudou e alunos com dúvidas escolares Foto: Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Solidariedade faz com que praça da Zona Sul vire grande escola a céu aberto

Projeto oferece aulas gratuitas em Botafogo para quem nunca estudou

Projeto dá aulas gratuitas em Botafogo para quem nunca estudou e alunos com dúvidas escolares - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

por Felipe Grinberg

RIO — A vontade de compartilhar conhecimento com quem precisa ultrapassou a fronteira das salas de aulas e chegou às praças públicas. Em Botafogo, a Praça Compositor Mauro Duarte recebe diariamente de 10 a 15 pessoas que querem estudar. Lá eles encontram voluntários, a maioria aposentados que possuem curso superior, dispostos a ajudar e compartilhar os conhecimentos em suas áreas de domínio.

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Há 6 meses uma foto de Silvério Moron sentado na praça com uma plaquinha escrito “Tiro dúvidas de matemática e física. Grátis” viralizou na internet. Aquele era o embrião do projeto “Adote um aluno”, que hoje conta com 120 alunos, desde alfabetização até de graduandos. Além de buscar mais professores voluntários - atualmente, são 7 - Silvério também tenta encontrar um solução para acomodar bem seus alunos em dia de chuva:

— Quando não chove eu gosto de ficar aqui na praça para as pessoas verem que existe a iniciativa e nos conhecerem. Além de motivar muitos a virem aqui depois, alunos ou voluntários, é uma grande oportunidade para quem não tem muitos recursos. Mas quando chove, por ser em uma praça, não tem jeito.

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Já no bairro do Méier, na Praça Agripino Grieco, há um mês, a pedagoga e hoje estudante e direito, Lily Santos, dedica as tardes de sábado para alfabetizar quem não teve oportunidade. No início, sua ideia era de ajudar apenas as crianças, mas o grande número de adultos e idosos que apareceram procurando sua ajuda, a surpreendeu. Algumas idosas saem de Bangu e Honório Gurgel para aprender com Lily:

— Só quero fazer a única coisa que aprendi: ensinar com amor. Tenho uma aluna de 75 anos e que tive de ensinar ela a aprender a ler e escrever do zero, tendo até que segurar a mão dela para ajuda-la, mas hoje ela já estar conseguindo ler e escrever sozinha.

Conheça a história de alunos e voluntários que se apropriam de praças pública para compartilhar conhecimento:

Maria Domingos: Desde 1990 tenta se formar

Maria Domingos luta desde 1990 para conseguir estudar - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Natural de Chapadinha, no interior do Maranhão, ela chegou ao Rio de Janeiro com apenas 16 anos para tentar a vida na cidade grande. Seu primeiro trabalho foi de doméstica. Foram poucos anos regulares no colégio. Em sua cidade, Maria aprendeu a escrever apenas seu nome na areia com um graveto.

Após ter engravidado aos 21 anos, ela buscou voltar à escola, ainda na década de 1990 e completou o Ensino Fundamental. Mas, ao mudar de escola e tentar entrar no Ensino Médio, ela foi informada pela direção do colégio que não poderia levar seu filho, ainda pequeno, para a sala de aula, como havia feito em anos anteriores.

Há menos de 1 ano, Maria decidiu que voltar a estudar seria a melhor decisão que poderia tomar. De volta ao colégio e com expectativa de começar cursos técnicos, a depiladora que divide seu tempo entre a escola e o trabalho lamenta a situação política que o país vive, mas que só foi perceber após voltar para a sala de aula:

— É melhor viver na ignorância do que ter conhecimento, em alguns casos. A gente fica mais revoltado quando aprende como funciona algumas coisas e descobre que não pode fazer nada.

O sistema de educação, a atenção e o tratamento que recebe de alguns docentes também são alvo de crítica de Maria. Com grandes dificuldades em várias matérias, ela quase pensou em desistir e culpa a falta de base dos primeiros anos como o principal problema:

— No meu histórico, consta que eu passei em matemática. Mas, na verdade, só apareceu um professor na última semana e passou as quatro operações — relembra.

— Foi somente aqui na praça, com ajuda dos professores, que comecei a aprender mesmo e tive forças para continuar. Quem está aqui é porque gosta — afirma.

Mas os problemas não ficaram só no passado. Atualmente matriculada na escola estadual Antônio Prado Junior, na Tijuca, Maria diz que poucos professores demonstram carinho pelos alunos, enquanto alguns nem avisam quando vão faltar:

— Odeio a matéria de história, mas tenho um professor fantástico que faz com que eu tenha vontade de ir. Mas há outros que não têm tato nenhum ou nem aparecem e, quando faltam, nem avisam. Tem um professor de geografia que só foi duas vezes desde o início do ano e a direção diz que não tem como pedir outro para colocar no lugar. Imagina trabalhar o dia inteiro, ir cansado pra escola e o professor não estar lá? — lamenta.

Raphael: esperança por um futuro melhor

Aluno Raphael Nascimento estuda com Silvério Moron - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Aos 26 anos, Raphael do Nascimento estuda engenharia de produção de uma universidade particular e está tentando mais um recomeço em sua vida. O jovem se formou em 2012 no Ensino Médio e, na época, devido a boas oportunidades no mercado de trabalho, começou a juntar dinheiro para tentar iniciar um curso técnico na área de mecânica.

Estudante de escola pública, Raphael que hoje mora na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, começou a trabalhar para conseguir pagar o curso. O pai é vendedor ambulante. A mãe, dona de casa. E nenhum dos dois tinha como bancar integralmente sua formação. Depois de muitos bicos, ele conseguiu iniciar seu curso em 2014. Mas, devido à crise financeira que atingiu o país, não conseguiu emprego depois de formado.

— Depois, fiz cursos de inglês, refrigeração e de outras áreas para tentar pagar minhas contas.

Com esperança de que o mercado volte a contratar, Raphael entrou na faculdade em 2017 sonhando com melhores oportunidades quando terminar o curso de 5 anos.:

— Nunca tive uma base boa de matemática. Percebi bem no segundo período da faculdade. Reprovei em três matérias por causa desse problema.

Sem condições de pagar um professor particular, o universitário viu Silvério em uma reportagem na televisão. Na mesma hora o encontrou na internet e marcou uma aula. Frequentando as aulas com os voluntários na praça Compositor Mauro Duarte desde março, Raphael conseguiu se recuperar e passar nas matérias que tinha dificuldade: cálculo, física 2 e álgebra.

— Minhas notas não ficam abaixo de 8 agora — comemora.

Josyane: A aluna 120

Josyani Santos, a aluna 120 do projeto "Adote um Aluno" - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Aos 26 anos, Josyane Santos cursa o primeiro ano do Ensino Médio e acabou há pouco o Fundamental. A estudante perdeu os pais muito cedo e teve que começar a trabalhar, o que a fez interromper os estudos. Ela decidiu voltar a estudar há 3 anos. Vendo seus amigos se formarem, Josyane começou a sentir que tinha ficado para trás.

Nesta terça-feira, ela teve a primeira aula com Silvério. Logo que chegou, forneceu seus dados para o pequeno cadastro que o idealizador do projeto tem de todos que passam por lá. Sua ficha é a de número 120.

— A educação é a base. Infelizmente, tive que interromper os estudos, mas agora quero focar em conseguir me formar e tentar, quem sabe, entrar para a faculdade de administração.

Ela cursa o 1º ano do Ensino Médio na Escola Infante Dom Henrique, em uma turma formada por adolescentes. Mais madura que os colegas, Josyane percebe que falta comprometimento de alguns professores e alunos:

— Tem má formação dos professores, a estrutura é precária. Alguns aparecem de má vontade. Há muitos alunos que também só vão para bagunçar tudo. Minha professora de química faltou quase dois meses inteiros. — reclama

Maria Luiza: dos bancos à praça

Praça Compositor Mauro Duarte é ocupada por alunos e voluntários dispostos a compartilhar conhecimento - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Formada em administração, Maria Luiza trabalhou por 36 anos em bancos e no setor financeiro. Ao se aposentar, com 65 anos, ela tentou a sorte no ENEM e acabou passando para pedagogia na UNIRIO. Nessa nova etapa de sua vida, começou a dar aulas particulares a crianças do 1º ao 4º ano do ensino fundamental, além de lecionar uma matéria na Fundação Logosófica, em Botafogo.

A pedagoga destina parte do seu tempo a ajudar meninos e meninas sem condições de acesso à educação particular. Além de ser voluntária e ajudar alunos de português e matemática no projeto "Adote um aluno", ela participa de leitura de histórias para crianças na escola municipal Francisco Alves. Apesar de só estrear de fato no magistério depois da aposentadoria, Maria Luiza já tinha dentro de si o espírito de professora na época que trabalhava no setor financeiro:

— Sentia muita pena de alguns funcionários analfabetos que não sabiam nem assinar o nome, precisando usar a digital em qualquer documento. Então, eu comprava alguns cadernos e, na hora do almoço, passava alguns exercícios. Alguns diziam que eram burros e não iriam aprender, mas eu logo retrucava: 'burro é um animal, você é gente'. — relembra.

Luzia dos Santos: 3 transportes para estudar

Aluna Luzia dos Santos, vestindo vermelho tira suas dúvidas - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Oitava pessoa a procurar ajuda com matemática no "Adote um aluno", Luzia tem 66 anos. Ela conheceu o projeto por meio das redes sociais e, logo nos dias seguintes, procurou Silvério. Moradora do bairro Colubandê em São Gonçalo, precisa pegar 3 conduções para chegar ao local de suas aulas, em Botafogo. A idosa se formou em 2015 no ensino médio e agora se prepara para fazer o ENEM no próximo ano.

Hoje aposentada, Luzia tinha apenas o ensino fundamental completo quando trabalhava como cuidadora. Agora, de olho no futuro, ela quer tentar uma vaga para cursar moda na faculdade. Aluna na juventude e na velhice, Luzia entende que a atenção que os estudantes ganham dos professores diminuiu com o passar dos anos:

— Fiz o ensino médio pelo EJA, mas foi bem ruim. O professor na escola normal não dá muita atenção. Aqui, ele dá toda a atenção que a gente precisa. Acho que como o professor ganha muito mal, isso desmotiva alguns.

Heloísa: compartilhar conhecimento como essência

Heloísa Sefton ajuda alunos do ensino fundamental e alfabetiza adultos - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Jornalista de formação e hoje artista plástica, Heloísa Sefton é professora de alfabetização e inglês do "Adote um aluno". Com a intenção de ensinar tudo o que sabe, Heloísa conheceu o projeto logo no início e foi uma das primeiras voluntárias.

— Eu sempre gostei de ensinar. Se eu sei cozinhar, ensino a cozinhar. Se eu sei bordar, ensino a bordar.

Heloísa acompanha principalmente alunos do ensino do fundamental. Às vezes, ela precisa dar aulas de uma matéria que não é a sua praia: a matemática. Não pela falta de professores no projeto, mas pela dificuldades de que alguns alunos apresentam de interpretar os problemas:

— A educação hoje está péssima. A gente vê gente formada e se formando que não sabe português. Quero pegar aquele aluno que não consegue fazer um cálculo porque não entende a pergunta. Quando dou aula para um aluno de matemática do ensino fundamental, preciso mostrar pra ele como interpretar e entender a pergunta.

Dona Nilda: 93 anos e a um passo da alfabetização

Nilda, de 93 anos, tem aulas ao lado do menino Marlom - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Há uma semana, Dona Nilda, de 93 anos, fazia seu passeio matinal pelas ruas de Botafogo, quando viu um grupo sentado na Praça Compositor Mauro Duarte. Embora já tivesse visto o movimento dias antes, aquela reunião chamou sua atenção. Ao perguntar o que estava acontecendo ali, ela descobriu que eram as aulas do projeto “Adote um aluno”. Saber que havia professores dando aulas gratuitamente perto de sua casa a animou a voltar a estudar e se alfabetizar.

Natural do interior do estado, Nilda Teixeira do Carmo chegou jovem ao Rio e começou a trabalhar de babá, ofício de que tem orgulho e que realizou por toda vida. Tendo cursado apenas o primeiro ano do Ensino Fundamental, ela está cheia de vontade de reaprender a ler e a escrever:

— Elas (as professoras) têm muita paciência com as pessoas. Agora, estou escrevendo as letras separadas. O meu nome já sei assinar. Fui até comprar meu próprio caderno, porque gosto de tudo que é meu. — disse Nilda, enquanto treinava a escrita da letra “e”.

No dia em que a reportagem encontrou com Dona Nilda, ela dividia a mesa com Marlon Bryan, de 10 anos, aluno do 4º ano do Fundamental e que vai todos os dias à praça para estudar matemática com os voluntários. A história de Nilda animou o menino, que pretende seguir os passos da “colega de turma”:

— Já aprendo com 10 anos. Mas vou continuar com 40,50, 60… — disse Marlon.

Nilda é bem humorada e apaixonada por crianças. Para ela, dividir a atenção da professora com uma criança é mais um motivo para continuar indo às aulas:

— Eu gosto é de criança. Sempre cuidei de crianças… Estou velha, mas não aturo velho. Pode me dar 10 crianças que eu cuido o dia inteiro — brincou a idosa.

Sem filhos, Nilda se mudou recentemente para a casa de uma sobrinha após seu irmão, que estava aos cuidados da filha devido à osteoporose, falecer. Ela gosta de se sentir independente. Além de frequentar as aulas três vezes na semana, ela quer começar a fazer ginástica na Praia de Botafogo, já que andar pelas ruas é seu passatempo favorito e pegar o ônibus sozinha parece não ser mais um problema:

— Eu acordo, tomo café da manhã, limpo o chão e vou para rua. Vou ao médico, faço minhas coisas. Não gosto de ninguém atrás de mim, não tem necessidade. A única coisa que preciso fazer e que me falaram é o cartão com meu endereço para deixar na bolsa.