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Programas federais de apoio às creches minguaram no atual governo

Creche - Getty Images/iStockphoto
Creche Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

27/12/2021 18h47

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Juliana Matoso Macedo*
Rogerio Veiga**

Os discursos sobre proteção às crianças, ecoados pelo atual governo, não se sustentam. O que se vê é o desmantelamento de políticas que impactam diretamente as crianças. Emblemático é o caso das creches, o qual também poderia ser analisado sob a perspectiva de direitos das mulheres.

Uma das principais políticas voltadas ao desenvolvimento infantil e à proteção da infância corresponde ao direito à educação. No caso das crianças de 0 a 3 anos, o Plano Nacional de Educação estabelece como meta o acesso de 50% das crianças nessa faixa etária às creches até 2024.

No Brasil, há 10 milhões de crianças com até 3 anos de idade. O último dado disponível, de 2021, aponta que apenas 35% (3,6 milhões) das crianças de 0 a 3 anos estavam nas creches. Até 2015, os percentuais de cobertura ainda estavam aumentando progressivamente dentro das metas pactuadas. Entretanto, de 2019 a 2021, os números pioraram em relação ao pactuado. Dentre os 20% mais pobres, o número cai para 23,6% de matrículas. São 113.985 escolas de educação infantil (que englobam também crianças de 4 e 5 anos de idade), das quais 80.973 são estabelecimentos públicos. Mas, entre 2019 e 2021 foram construídas apenas 725 unidades de educação infantil!

Ou seja, fica claro o problema de falta de vagas para crianças pequenas. Se o objetivo é ampliar a cobertura, os governos precisam ampliar a oferta de vagas, o que demanda investimentos na construção de novas creches e em reformas de edificações já existentes, aquisição de mobiliário e infraestrutura e contratação de pessoal. No entanto, pelo menos quatro programas federais de apoio às creches minguaram no atual governo

O Programa de apoio a novos estabelecimentos de educação infantil, criado para custear gastos de manutenção das creches recém construídas mas que ainda não recebem recursos do FUNDEB porque o Censo Escolar leva um ano para coletar o dado de novas matrículas. Uma criança que entra na creche em 2020 só vai aparecer no Censo no final de 2020 e será contabilizado para fins de repasse apenas em 2021. Muitos municípios não têm recursos para bancar esse primeiro ano sem os repasses do Fundeb.

O programa Brasil Carinhoso, que oferecia apoio financeiro suplementar à manutenção e ao desenvolvimento da educação infantil, teve seus recursos cortados a partir de 2015. Em 2021, foi revogado pela Medida Provisória 1061/2021, que substituiu o Programa Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, aprovado pelo Senado no dia 2 de dezembro.

O ProInfância - Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil - segue trajetória parecida de redução dos recursos investidos e paralisação de novos contratos.

O Programa de apoio a novas turmas de Educação Infantil, criado para custear gastos com as crianças em novas turmas que ainda não recebem recursos do FUNDEB por causa do Censo Escolar continua existindo, mas como não há aumento nos investimentos para construção de novas creches, ele atende aos municípios que expandem vagas com recursos próprios ou as creches do ProInfância contratadas há alguns anos que vão sendo entregues.

O FUNDEB foi a única política pública que teve avanço nesse período. A promulgação da EC 108/2020 tornou o FUNDEB permanente, ampliou a complementação da União de 10% para 23% e estabeleceu que 5,25 p.p. da complementação da União sejam direcionados para a educação infantil. Embora essa medida seja positiva, ela por si só não garante a ampliação da oferta de vagas.

O principal argumento do governo federal para reduzir os investimentos na ampliação de vagas em creches é a falta de recursos devido ao teto de gastos. Entretanto, o Ministério da Educação recebeu, em 2019, R$ 1 bilhão, fora do teto de gastos, para investir em educação infantil e não utilizou o dinheiro. Trata-se, portanto, de uma decisão política que evidencia a falta de prioridade a essa faixa etária.

Um segundo discurso do governo é explicitamente voltado ao investimento na oferta privada de creches por meio dos chamados "vouchers". No dia 11 de fevereiro de 2020, o então Ministro da Educação anunciou no senado federal um programa anual de voucher. Em setembro de 2021, o governo federal encaminhou a Medida Provisória 1061/2021 que criou um programa de voucher para creches, chamado de Auxílio Criança Cidadã.

A proposta, até o momento, se resume ao seguinte: o voucher está voltado para o beneficiário do Auxílio Brasil; os adultos responsáveis devem comprovar exercício de atividade remunerada para acessar as creches privadas; o repasse de recursos será para as creches; e o credenciamento e a operacionalização dos repasses não será realizado pelo Ministério da Educação.

Há muitos problemas na proposta. O primeiro e mais óbvio é que não há vagas ociosas em escala relevante: mais da metade dos municípios brasileiros sequer têm creches privadas para ofertar vagas. Nas grandes cidades, a oferta de vagas em instituições privadas está nos bairros mais ricos, distante das periferias, que concentra a demanda. Em segundo lugar, o programa de vouchers dificilmente criará novas vagas. Segundo o presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), as creches particulares de qualidade não conseguiriam oferecer o serviço com valores propostos de R$200 (período parcial) ou R$300 (período integral). Esse valor é inferior ao mínimo considerado no Fundeb por aluno de creche integral, em torno de R$ 408. Este valor não induzirá a oferta privada e, se induzir, será de baixa qualidade.

Um erro grotesco da proposta é a exigência de que o responsável familiar esteja em trabalho remunerado para que a criança sob seu cuidado possa acessar a creche. Como buscar trabalho ou começar a trabalhar com uma criança pequena para cuidar? Ora, a vaga na creche é condição para a inserção no mercado de trabalho. Ademais, como será realizada a identificação tempestiva dessa inserção laboral individual em tempo real em escala nacional e sua relação com o repasse de recursos às creches?

O governo federal, frente aos desafios da pandemia e aumento do desemprego e da vulnerabilidade social, ao invés de garantir o desenvolvimento humano integral à primeira infância e a inserção das mulheres no mercado de trabalho, retrocede a ações que eram implementadas no Brasil no início do século XX, de caráter benevolente, frágeis, desprovidas de caráter técnico e fragmentadas.

* Juliana Matoso Macedo é especialista em políticas públicas e gestão governamental desde 2002, socióloga e doutoranda em Ciência Política pela UNB.

** Rogerio Veiga é especialista em políticas públicas e gestão governamental desde 2007, e mestre em política científica e tecnológica pela Unicamp.