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Professores veem exagero de João Doria no recolhimento de apostilas das escolas estaduais

Identidade de gênero não é único tema em desacordo com currículo nacional, dizem especialistas em educação
Material que citava identidade de gênero foi recolhido das escolas de São Paulo. Foto: Reprodução
Material que citava identidade de gênero foi recolhido das escolas de São Paulo. Foto: Reprodução

SÃO PAULO - Apontada pelo governo de São Paulo como justificativa para o recolhimento das apostilas de ciências em escolas estaduais, a incompatibilidade do tema "identidade de gênero" com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é apenas uma de outras desatualizações dos livros didáticos utilizados na rede pública paulista. Segundo especialistas e dirigentes da área de Educação no estado, portanto, a retirada dos materiais por esse motivo seria exagerada.

Na terça-feira (3/9), após determinação do governador João Doria, a Secretaria de Educação recolheu livros de exercícios relativos ao terceiro bimestre do 8º ano do ensino fundamental das escolas estaduais . O material apresentava ao estudante alguns conceitos como sexo biológico, orientação sexual e identidade de gênero e suas respectivas classificações: cisgênero, quando a pessoa se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu, e transgênero, quando não se identifica. O texto citado era de autoria do Ministério da Saúde.

Segundo o comunicado, o tema seria "conteúdo impróprio" para os jovens de jovens de 13 a 14 anos. Nos debates da Base Nacional, a referência a identidade de gênero realmente foi retirada, mas a interpretação de especialistas é de que o documento não proíbe sua citação.

As apostilas usadas neste ano em São Paulo são elaboradas por servidores da rede estadual com base no projeto São Paulo Faz Escola. Desde o ano passado, contudo, o governo promoveu consultas públicas e audiências para a confecção do Novo Currículo Paulista, que ajusta a grade curricular paulista ao padrão nacional estipulado pela BNCC. A aprovação ocorreu no mês passado.

Há portanto várias outras discrepâncias entre o material utilizado neste momento e os currículos estadual e nacional. Em um exemplo, ambos preveem a antecipação de temas de matemática, história e português, que antes eram indicados para os anos finais do ensino fundamental e agora deverão ser apresentados nos anos iniciais. Já temas como estatística irão aparecer antes nos novos materiais que ainda estão sendo produzidos. Em história, por sua vez, há previsão de que os professores tratem sobre diversidade dentro do conceito de direitos humanos. O surgimento dos seres humanos e o nomadismo também deve aparecer antes, nos 4º e 5º anos. Hoje, está nas apostilas do 6º ano.

Segundo Luiz Miguel Garcia, presidente da seção paulista da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), o momento é de transição entre um material e outro. O novo currículo foi formulado em regime de colaboração com a Undime. O prazo mínimo para terminar um material que atenda todas as necessidades e com base no novo currículo é de cerca de dois anos.

— É um material que está sujeito a isso porque foi elaborado antes de ter a BNCC. Há uma série de questões que foram incluídas na BNCC e não estavam contempladas no material. Assim como pode ter abordagem de algumas questões que foram superadas, que não entraram na BNCC e que antes se considerava relevante. Eu diria que esse é o preço do momento de transição que a gente vive. Talvez o governador pudesse contextualizar de uma forma mais amena sem fazer a retirada. Com um adendo, por exemplo — disse.

Especialistas acham que currículo deixa tema em aberto

Representantes da entidade que participaram da elaboração do novo currículo ouvidos pelo GLOBO afirmam que o novo currículo paulista não trata o tema de forma ideológica, mas que ele está incluído no projeto.

— Quando se propõe trabalhar com a diversidade, é toda a diversidade. É preciso considerar todo esse contexto para desenvolver as competências e é algo que está posto tanto na Declaração dos Direitos Humanos ou como nas questões da área da saúde. Não tem nada explícito e nem ideológico, até porque a gente considera que o currículo é normativo para a rede. Mas ele garante a recontextualização de acordo com a realidade local — afirmou um dirigente municipal que atuou na coordenação do novo currículo.

De acordo com o professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo e consultor da Unesco para propostas curriculares, Luis Carlos de Menezes, a decisão do governador João Doria constitui uma censura. No projeto São Paulo Faz Escola, ele foi o coordenador da área de Ciências.

— Acho que os cuidados com a saúde, os cuidados com o jovem, não deveriam ser lugar de censura de nenhum tipo. A Base Nacional Curricular Comum não determina mas também não proíbe (o assunto), o que eu acho que é o correto. Não há razão para retirar material didático por conta disso: é um desperdício, para começo de conversa — afirmou.

Segundo Garcia, na metade do primeiro semestre, a Secretaria de Educação entrou em contato com a entidade sobre a elaboração de um novo material mas, devido à escassez de tempo, ficou pactuada a realização de um processo de adequação do atual material à base enquanto as novas apostilas fossem confeccionadas.

— Se fosse um material pactuado e construído conjuntamente e um dos entes retira o material, cancela e anula, seria preocupante. Nesse caso, é um material antigo. Por outro lado, a gente tem que ter o bom senso: por conta de não estar todo adequado à base, tiramos todo o material e fica sem material? — questiona Martins.

Participantes do processo de confecção das apostilas atuais que não quiseram se identificar afirmam que, embora alguns ajustes ou complementações precisam ser realizados para adequar o material à Base Nacional e ao Novo Currículo Paulista, não há razão para seu recolhimento já que outras alternativas poderiam ser tomadas, como um adendo ou uma contextualização.

Para Menezes, no entanto, a decisão do governador tem menos ligação com a Base Nacional do que com um cálculo político. De acordo com o professor da USP, a retirada do material é um aceno do governador a setores mais conservadores.

— Quando se pensa na Base, ela tem um mérito que é não ser lista de discurso de quem ensina, é percurso de atividade de quem aprende. Por isso, é vantajosa uma readequação do materiais escolares quando houver oportunidade de fazer. (Retirar) É parte de prestar conta para setores extremamente atrasados desse país — afirma.

Nesta quarta-feira, o Núcleo da Capital do Grupo de Atuação Especial de Educação (Geduc) do Ministério Público de São Paulo instaurou um inquérito civil para apurar a notícia de recolhimento e inutilização do material didático distribuído na rede estadual. Os promotores querem apurar violação do direito à educação e possível danos ao erário público.

O Geduc pediu informações sobre os valores pagos para edição, impressão, distribuição e armazenamento das citadas apostilas. Os materiais recolhidos não continham apenas ciências mas também outras disciplinas.

Os materiais didáticos fazem parte de um projeto desenvolvido desde 2007, o São Paulo Faz Escola. O novo currículo estadual foi aprovado apenas em agosto deste ano. A BNCC, por sua vez, é de 2017.