Ataques a tiros nas escolas brasileiras nos últimos anos põem em xeque o papel do professor em criar (e proteger) cidadãos para o futuro. Mas valorizar esses profissionais passa por livrá-los dos estereótipos, entre os quais muitas vezes se alternam até na cobertura jornalística, de heróis ou vítimas, dizem especialistas em educação.
“A gente precisa mirar na valorização e profissionalização da docência para conseguir transformar a educação brasileira. Uma premissa de como a gente trabalha essa questão é tirar um pouco esse espaço do professor como vítima”, diz o gerente de Políticas Educacionais no movimento Todos Pela Educação, Ivan Gontijo, durante Live do Valor + Valor Social com o tema “Professor, para além dos muros da escola” nesta segunda-feira, 30.
Outra leitura equivocada, segundo ele, é a do “professor que pega três canoas, quatro barcos, para dar aula para os estudantes, um herói que supera todas as adversidades sozinho”.
“Temos que sair desses dois polos, do professor vítima e do professor herói, e olhar para o professor como um profissional de fato e um profissional como todos nós, que precisa de muito apoio, boas condições de trabalho e ser bem formado para conseguir exercer um trabalho supercomplexo, que é ensinar 20 ou 30 alunos”, diz.
Para que o bullying não seja um gatilho para os atos extremados de violência, o papel da escola é trabalhar, além das disciplinas curriculares, empatia e valores de convivência e respeito ao próximo, diz a professora de língua portuguesa Elineide Alves dos Santos Fernandes, criadora do projeto “Distante sim, desconectados não”, que alfabetizou pais de alunos.
“Precisamos trabalhar esses valores nos estudantes para que eles entendam que o respeito está acima de tudo e o respeito vem sempre primeiro, para que tenhamos uma escola da paz, uma escola que eduque para a vida”, diz. E cita Paulo Freire, seu conterrâneo permambucano: “Se a educação sozinha, não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.”
A iniciativa em Cabrobó (PE) rendeu a Elineide o Prêmio LED 2023 na categoria voto popular. A premiação é um dos pilares do Movimento LED - Luz na Educação - iniciativa de Globo e Fundação Roberto Marinho criada para iluminar práticas inovadoras em educação.
Os obstáculos à valorização do professor começam na formação. “Hoje, um desafio muito grande que a gente tem é que, de cada dez alunos que concluem os cursos de formação de professores no Brasil, 65% estão no ensino a distância (EAD)”, diz Gontijo com base em estudo do Todos pela Educação.
“Formar um bom professor não é uma tarefa fácil. Exige muito tempo, exige muito cuidado, exige uma formação clínica. Da mesma forma que você precisa formar um médico, por exemplo, dentro de um hospital, um professor precisa ser formado desde o início da sua graduação nas escolas de educação básica, que são o seu espaço de atuação”, diz o especialista.
Elineide concorda que a expansão do EAD na formação básica de professores é preocupante, justamente por afastá-los da tão essencial convivência em sala de aula.
Diante da precariedade das condições de trabalho, ela critica o aumento no percentual de professores temporários, que já supera o de efetivos nas redes estaduais. “O professor está naquela escola, e aí no outro ano ele já muda. E, como não é atrativo o salário, então ele já sai da sala de aula”, afirma. “Essa rotatividade faz com que o aluno perca os laços com aquele professor, o que atrapalha bastante.”
Com a pandemia, os desafios só aumentaram, mas também criaram oportunidades como a do projeto de Elineide, iniciado em 2021. “Percebemos que muitos pais não conseguiam ajudar seus filhos nas tarefas, entender essa aula através do celular, ler as mensagens nos grupos de WhatsApp. Convidamos essas famílias para a escola, mais as mulheres, porque os homens estavam trabalhando fora, e começaram a vir para a escola para ser alfabetizadas ou reforçar o que elas já sabiam.”
Apesar das dores, Ivan destaca as delícias da atividade. “Qual profissão tem a possibilidade de interagir, ensinar, trocar com mais de 150 pessoas em formação, passar valores fundamentais da nossa sociedade, contribuir para um mundo mais justo, menos desigual, de estar em contato com a potência que são nossas crianças e jovens?”, questiona Gontijo.
Ele também reconhece as conquistas dos últimos anos. “A remuneração dos professores 30 anos atrás era muito pior que hoje. O piso nacional tem cumprido um papel importante em aumentar a remuneração”, afirma. Os professores hoje têm direito a um terço de carga horária extraclasse remunerada, que não havia 20 anos atrás.”
Elineide acredita que não existe professor sem empatia, sem afetividade. "Ser professor é apostar no poder transformador da educação, que os próximos profissionais, os profissionais do amanhã, serão profissionais e cidadãos melhores, que serão sempre as suas melhores versões. A educação é um campo necessário para a sociedade. É uma profissão que eu escolhi, que me faz muito feliz."