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Rio

Professores municipais vão fazer curso para aprender onde abrigar alunos durante tiroteios

Secretário justificou treinamento citando a 'violência que atinge o Rio'
Escola Municipal Espírito Santo, em Cavalcanti Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Escola Municipal Espírito Santo, em Cavalcanti Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

RIO - A prefeitura do Rio, que havia prometido, no ano passado, “blindar” com uma argamassa especial escolas em áreas de risco , acabou tomando uma medida mais concreta: resolveu ampliar o treinamento de segurança que já oferece, em parceria com a Cruz Vermelha, em colégios de regiões conflagradas. A Secretaria municipal de Educação decidiu que os profissionais de suas 1.537 unidades vão às salas de aula para aprender a lidar com a violência que assola a cidade. Em aulas práticas, eles vão ser ensinados a reconhecer, por exemplo, o melhor lugar para abrigar as crianças em caso de tiroteios e também a tomar decisões que podem salvar vidas, como abrir, ou não, as portas de uma unidade em um cenário de tensão na vizinhança. A previsão é formar toda a rede até 2020.

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Ao instituir o programa “Acesso mais seguro às escolas”, no último dia 30, o secretário de Educação, Cesar Benjamin, justificou a necessidade de treinamento citando o “quadro de violência que atinge a cidade do Rio de Janeiro”. A ideia é que os funcionários da secretaria que já foram treinados repassem a colegas de outras unidades o que aprenderam. A Cruz Vermelha vai supervisionar o processo. De acordo com Aura Souza, assessora da Secretaria de Educação responsável pelo projeto, será criada uma equipe, dentro da pasta, para acompanhar em tempo real situações de risco nas escolas.

— Professores e servidores avaliam os riscos no entorno, que são classificados de acordo com o protocolo. Cada risco gera uma ação, de proteção. Também vai ocorrer um monitoramento em tempo real, pelas equipes da secretaria, da situação das escolas — disse Aura, explicando, que, nos casos de unidades que sofrem com confrontos frequentes na vizinhança, o “Acesso mais seguro” também vai oferecer atividades com psicólogos e assistentes sociais para estudantes e servidores.

Em julho do ano passado, uma equipe do GLOBO acompanhou o primeiro treinamento da Cruz Vermelha a funcionários da Educação do Rio. Durante quatro dias, 41 professores assistiram aulas, já ministradas em locais de guerra, como Colômbia, Honduras, Ucrânia e Líbano, que ensinavam, por exemplo, que nem sempre o corredor — para onde costumam ser levados os alunos, em casos de confronto armado nas imediações — , é o local mais seguro do prédio. Eles também aprenderam que é preciso ficar atento aos mínimos sinais na hora de avaliar se a escola deve fechar por causa da violência. De acordo com os especialistas da Cruz Vermelha, não há uma “receita de bolo”. É necessário observar o entorno do colégio. A ausência de cachorros na rua, em determinadas favelas, pode indicar riscos. Em outras, o barulho de carros passando diante da unidade é um sinal de normalidade que deixa todos mais tranquilos.

Segundo Aura, o treinamento já foi realizado, ou está em fase de conclusão, em 349 escolas, muitas delas em áreas de confrontos recorrentes, como Jacarezinho, Cidade de Deus e Rocinha. Graças às aulas, diz ela, tem sido evitada a evasão de professores e reduzida a frequência de fechamento de escolas.

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— É o entorno violento que afeta a escola. A escola vai justamente na contramão da violência. É dentro dela que temos a abertura de novas perspectivas para os alunos — afirma Aura, que ressalta também que o programa não se debruça apenas sobre a violência armada, mas também sobre primeiros socorros, de forma geral, e fenômenos ambientais. — A perspectiva é que possamos ter um comportamento mais seguro diante da situação da cidade, não só em relação à violência.

ESPECIALISTAS E PROFISSIONAIS SE DIVIDEM

A decisão de treinar toda a rede provocou polêmica. Para Marta Moraes, coordenadora do Sindicato Estadual dos Profissionais do Rio de Janeiro (Sepe), a medida não é eficaz para reduzir a tensão no ambiente escolar:

— Pela experiência que a gente viu, não são propostas que realmente enfrentam essa situação. Você não tem uma política de segurança em conjunto com todos os interessados. É um paliativo. Hoje temos professores doentes e alunos com problemas sérios de fobia. É uma situação muito grave.

Meio-irmão de Maria Eduarda Alves, que morreu em março do ano passado, aos 13 anos, vítima de uma bala perdida durante uma aula de educação física numa escola em Acari , o professor de boxe Uidson Ferreira, de 33, disse ontem duvidar da eficácia do projeto.

“Hoje temos professores doentes e alunos com problemas sérios de fobia. É uma situação muito grave”

Marta Moraes
Coordenadora do Sindicato Estadual dos Profissionais do Rio de Janeiro

— No papel, isso aí fica até muito bonito de ouvir e falar. Na prática, quero saber quando vão acabar com a mortandade nas escolas e se essa medida vai prevenir novos acidente ou até mesmo mais uma fatalidade. Minha irmã faria 15 anos no dia 15 deste mês, nossa dor ainda é muito grande. Quando ela morreu, a prefeitura prometeu blindar as escolas municipais que ficam em áreas de risco, mas, até agora, nada foi feito — desabafa Uidson.

A economista Bárbara Barbosa, autora de pesquisas sobre o impacto da violência armada na educação, afirma, por sua vez, que a medida da prefeitura não é ruim, mas defende suporte contínuo de equipes de saúde mental para alunos e profissionais de unidades em áreas mais conflagradas:

— A gente não pode pensar só no fato violento. A capacidade de manter o foco, entre essas crianças e jovens, é mais curta. Obviamente, é preciso um protocolo de ação para professores e alunos que os deixe mais seguros, mas é necessário pensar também em didática e desenvolvimento da criança dentro da sala de aula.

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O sociólogo Ignacio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, vê com bons olhos o projeto e lembra que a pasta já tentou negociar, junto à Secretaria de Segurança, a redução de operações policiais em horários escolares, outro caminho possível para diminuir os riscos:

— Claro que não é o ideal que você tenha que passar por isso, mas é uma opção importante para escolas em áreas de risco.

A Secretaria de Educação informou que a argamassa para blindar escolas ainda está em fase de testes pela Polícia Civil.