Professores da natureza

Por que os 'seres encantados' da mata são muito mais que lendas e o quê eles têm a nos ensinar

Carlos Minuano (texto) e Francisco Proner (fotos PB) Colaboração para Ecoa, em Iranduba (AM) Helena Alba / Creators Academy

Viajar pela floresta Amazônia é como se transportar para outro mundo. Além da natureza imponente e majestosa, a região é cheia de histórias de seres encantados e misteriosos, como curupira, boto, mãe d'água. À primeira vista, pode até não parecer, mas essas lendas amazônicas têm muito a nos ensinar. Podem, inclusive, apontar caminhos sobre como salvar um mundo em colapso.

É preciso usar muitas aspas ao chamar essas histórias ancestrais de mitos, sugere a gestora de políticas públicas Kamila Camilo, diretora-executiva do Instituto Oyá, que trabalha com educação, arte e cultura em São Paulo. Ela também é criadora do projeto Creators Academy, que tem promovido imersões educativas na região amazônica.

Para Kamila, o olhar de fora da floresta tende a ser colonizador. "Tudo que tem a ver com a espiritualidade que é não judaico-cristão eurocêntrico colocamos na categoria de mito".

Ela diz que os 'encantados' são para os povos da floresta seres espirituais assim como a Virgem Maria, para os cristãos. "E eles ensinam sobre tudo, cuidado com as águas, proteção das florestas, gestão das plantas."

Na maioria das vezes registradas pela oralidade, essas histórias ajudaram as comunidades amazônicas a desenvolverem as suas habilidades de cuidado com os territórios onde vivem, observa Kamila. "São fundamentais para conectá-los com essa necessidade de proteção e preservação da floresta."

Francisco Proner Francisco Proner

As várias formas da curupira

A curupira amazônica, segundo Kamila, não é aquela figura caricata de cor verde e pés para trás retratadas nas histórias do 'Sítio do Pica-Pau Amarelo'. Ela diz que a curupira assume formas diferentes de animais e de elementos da floresta para ensinar as pessoas.

"É uma entidade, um ser encantado que cobra das pessoas quando elas desrespeitam a natureza". Ela acredita na força dessas histórias para ensinar não apenas crianças, mas também os adultos sobre temas relevantes, como a proteção da floresta.

A reportagem de Ecoa esteve em Tumbira, uma comunidade ribeirinha, localizada no município de Iranduba, a quatro horas de barco de Manaus, às margens do rio Negro. Por lá, relatos de encontros com curupira correm soltos.

Francisco Proner Francisco Proner

As histórias do 'beiradão'

Um dos primeiros moradores da comunidade, o ribeirinho Raimundo Antero Alves, de 75 anos, que nasceu e cresceu em Tumbira, conta que antigamente, quando era madeireiro junto com o pai, mais de uma vez foi espantado pelos seres da floresta. "Chegava a passar uma semana na mata cortando madeira".

O ribeirinho diz que viu e ouviu muita coisa. "Dizem que é curupira". Ele relata sons de batida em troncos de árvores e muitos assobios estranhos à noite. "A gente levava cachorros para caçar porco, até eles ficavam com medo."

"A mata é misteriosa, principalmente à noite", comenta outro ex-madeireiro da comunidade ribeirinha de Tumbira, Roberto Brito, 46 anos. Ele conta que, entre os sons que já ouviu, teve até gritos semelhantes ao de seres humanos.

Para ele, tratava-se de uma perseguição da curupira por causa das agressões à natureza. "Mas ela foi muito paciente, como uma amiga que tenta avisar que você está fazendo algo errado", comenta Brito. "Não é lenda, existe mesmo."

Francisco Proner Francisco Proner

Imagina você dentro de um igarapé, onde se sabe que não tem mais ninguém por perto e de repente começa a ouvir esses barulhos.

Roberto Brito, ribeirinho de Tumbira (AM)

Francisco Proner e Helena Alba Francisco Proner e Helena Alba

Professora natureza

"Os espíritos que foram durante anos demonizados pelo cristianismo, pelos brancos, para a gente que é da floresta são espíritos sagrados", diz a cineasta indígena Priscila Tapajowara, 30 anos.

Em 2022, ela lançou no YouTube a série documental "Ãgawaraitá" ("encantados" em nheengatu, língua indígena falada na Amazônia brasileira).

No filme, anciões, curandeiras e rezadeiras falam sobre a relação entre seres da cosmogonia indígena e temas como cultura e preservação da floresta. "São os 'encantados' que estão na mata, cabeceiras, rios, igarapés, defendendo e protegendo esses lugares".

Priscila conta ter aprendido muito sobre isso na região onde vive, em Santarém (PA), e principalmente dentro de casa com os avós. Uma interpretação dessas histórias bem diferente da que ouviu nas escolas.

Francisco Proner Francisco Proner

Reverência e respeito

Segundo ela, essas entidades são as protetoras da natureza. Por isso, ao entrar na floresta, ela recomenda sempre pedir licença. "Para usufruir da casa, do lugar sagrado daquele 'encantado', temos que ter essa reverência, respeito e cuidado."

A cineasta conta que ela própria chegou a duvidar das histórias. Desde criança ouvia o avô falando que meio-dia e às seis horas da tarde não poderia ir ao rio, ao igarapé, nem ficar pulando, gritando, que mulher menstruada não deveria ir para beira de rio, floresta, entre outras recomendações do tipo. "Comecei a questionar se era real", lembra.

Ela começava a se relacionar com pessoas de outras regiões, mas sua cabeça era de uma jovem que nunca tinha saído da Amazônia. "Eu me deixei levar porque achava que sabiam muito mais do que nós que vivemos na floresta", diz.

Dizem que são mitos, lendas, folclore, que é uma criação do imaginário, mas na verdade esses seres existem.

Priscila Tapajowara, cineasta

Francisco Proner Francisco Proner

Encontro com a curupira

No entanto, certo dia quando fazia uma trilha para apresentar uma samaúma para um amigo estrangeiro, Priscila afirma ter se encontrado com a curupira e recebido ensinamentos valiosos dela.

Era a primeira vez que fazia a trilha, e ao entrar na floresta, conta que começou a brincar com os amigos, zombando da curupira, como se ela não existisse. Como estava acostumada a andar no mato, ela foi na frente da turma, se distanciando para ouvir melhor os sons da floresta. Foi quando entrou, segundo ela, numa espécie de transe.

"Era como se tivesse dormido, meus amigos desapareceram, não ouvia mais a voz deles, nem o som dos pássaros", lembra. Ela diz ter olhado para o lado esquerdo da trilha e no meio do mato viu uma mulher muito parecida com ela, nua e com corpo pintado de grafismo indígena.

"Ela ficava me olhando, sem falar nada, era como se estivesse me chamando, senti vontade de ir". A indígena diz que nesse momento começou a ventar muito e a mulher se transformou em várias que ficavam correndo ao seu redor. "Senti vontade de tirar minha roupa e sair correndo com ela."

Quando estava quase indo embora com as mulheres pintadas, ouviu o guia que estava com eles chamando por seu nome. Foi quando saiu do transe e se reuniu novamente com o grupo.

Não comentou nada sobre o que tinha acontecido, mas quando chegou à área da samaúma, desabou a chorar. "Sentia uma conexão muito forte". Segundo ela, depois desse dia, todas as vezes que se aproxima de uma samaúma, coisas sobrenaturais acontecem.

A natureza é como uma boa mãe, porque dá alimento e sabedoria.

Priscila Tapajowara, cineasta

Helena Alba Helena Alba

'Encantarias'

Depois, seu avô explicou que a curupira tinha aparecido para ensinar uma lição, porque ela havia zombado dela como uma pessoa que não pertencesse à floresta. "A partir desse momento comecei a me sentir um ser muito mais pertencente de onde sou."

Nas andanças pela Amazônia e recentemente na pesquisa sobre as "encantarias" para sua série no YouTube, a cineasta conversou com muitas pessoas sobre a importância dos espíritos da floresta e dos rios.

Ela diz que em um dos episódios da série, uma curandeira fala que as pessoas só irão respeitar as florestas e rios a partir do momento que entenderem que são lugares sagrados, que possuem espíritos, que nesses locais habitam seres encantados que precisam ser respeitados.

Priscila observa que na Amazônia há vários povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, com cosmovisões diferentes, mas suas ideias são idênticas quanto ao respeito com a floresta, os seres encantados e a importância de manter esses lugares sagrados preservados.

"É por isso que lutamos pelo rio, pela floresta, pelos igarapés, não é só pela questão da subsistência e por ser nossa morada, mas porque entendemos que esses lugares precisam estar vivos, de pé, meu avô diz que a ganância está matando a natureza."

A cineasta defende que a natureza é a melhor professora da vida. E dá como exemplo o seu avô, que não conviveu com os pais e nunca estudou em escola. "Quem ensinou sobre a vida foram os rios, a floresta, a natureza, e não tem ensinamento melhor e mais grandioso que esse."

*O jornalista viajou para Iranduba (AM) a convite do Creators Academy.

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