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Ao ensinar história e cultura da África para o 5º ano do ensino fundamental do Colégio Frederico Ozanam, em Belo Horizonte, a professora de História e escritora Lavínia Rocha, 25, fez uma pergunta aos seus alunos.
"Em quais coisas vocês pensam quando eu falo África?", questionou. "Pessoas escravizadas", "pessoas magras", "pobreza" e "pessoas doentes", disseram os alunos.
As respostas, segundo ela, expõem estereótipos em relação ao continente reproduzidos por parte dos brasileiros, mesmo 20 anos após a obrigatoriedade do estudo sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas do país.
A professora relata que repetiu a pergunta após os alunos passarem por aulas sobre o continente e realizarem trabalhos de pesquisa orientados durante uma semana. O total de respostas mais do que triplicou e qualidade delas também.
A diferença foi registrada em um quadro fotografado com orgulho por Lavínia e compartilhado em um vídeo que viralizou nas redes sociais. Um dos alunos, inclusive, comentou: "professora, você lembra do quadro que a gente fez? Tinha só um 'tantin' (sic) de coisa. Olha o tanto que tem agora".
Formada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lavínia dá aulas em Belo Horizonte. Ela pontua a importância de discussões como essa no ambiente escolar, mas afirma que o esforço ainda fica muito concentrado nas mãos dos professores.
"No Brasil, nós conversamos pouco sobre raça. Como professora de História, eu entendo que precisamos falar disso o tempo todo. As diretrizes da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) me dão respaldo para dialogar sobre o legado da escravidão no Brasil, então posso falar sobre raça. Mas muito do que eu levo para a sala de aula vem do que eu estudo", diz.
Ela conta que, na UFMG, a disciplina de história da África dura um semestre. Outras, como história da Europa, das Américas ou do Brasil, têm mais módulos e são estudadas durante dois ou quatro semestres.
"São dois professores, um para ensinar África pré-colonial e outro, pós-colonial. Você precisa escolher entre um e o outro. Eu estudei África pós-colonial e fiquei sem o conteúdo pré-colonial. Não tem como, em um semestre, dar toda a história da África."
O professor e ex-coordenador do curso de História da UFMG Luiz Arnaut confirma que a disciplina de histórica da África tem duração de um semestre, mas diz que não há divisão pré e pós-colonial. "Em função da autonomia docente, o professor pode adaptar o conteúdo de forma que seja pertinente ou interessante como discussão", afirma.
Ele acrescenta ainda que a UFMG oferece formações transversais, que são complementares à graduação e permitem aprofundar os estudos em torno de grandes temáticas, envolvendo diversos campos do saber em uma perspectiva mais crítica. Entre elas, há a formação "Relações Étnico-Raciais, História da África e Cultura Afro-Brasileira", que pode ser cursada pelos alunos.
Há uma discussão recente sobre a ênfase que os cursos sempre deram à história da Europa, pontua Arnaut. Segundo o professor, o movimento de reformulação do ensino vem de forma lenta e caminha com a expansão dos estudos sobre África.
"Nem toda disciplina permite cobrir todo conteúdo, nem mesmo as de Brasil. A ideia de uma disciplina universitária não é esgotar os assuntos", defende.
Nesse contexto, professores relatam dificuldades em implementar a lei de 2003 que determina que o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira deve ser feito no ensino fundamental e médio, oficiais e particulares.
"A lei existe, mas a gente não conta com tanto apoio das instituições para poder se adequar à ela", afirma a Lavínia.
ENSINO SOBRE ÁFRICA NAS ESCOLAS
Cronologia: a lei foi sancionada em 2003, direcionada à educação básica. Foi complementada em 2008 para estender a prática ao ensino médio e incluir povos e culturas indígenas no rol de conteúdos obrigatórios.
O que diz a lei: É obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares.
- O que deve ser ensinado: história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política da história do Brasil.
- Em quais disciplinas? Em todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, Literatura e História.
O repórter da Folha Lucas Lacerda conversou com especialistas sobre a lei, que apontaram entraves em sua aplicação:
- Fiscalização: órgãos que gerem a política de educação e os que deveriam garantir sua aplicação têm sido omissos.
- Formação de professores: o ensino geralmente fica a cargo de professores ligados a estudos étnico-raciais ou associados a organizações do movimento negro.
- Material didático: faltam materiais que aprofundem a temática.
Para educadores que querem mergulhar no ensino de raça, cultura e história africana, Lavínia indica duas fontes de informação:
- Portal Geledés: site da organização da sociedade civil Geledés - Instituto da Mulher Negra, que atua em defesa de mulheres e negros.
- Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN): estuda e preserva o patrimônio material e imaterial africano e afro-brasileiro.
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