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Brasil Educação

Professor é afastado após criticar diretor por ler carta do MEC com slogan de Bolsonaro

Wellington Divino Pereira dava aula em escola militarizada de São Luís de Montes Belos (GO) e foi suspenso por 'grave insubordinação'; ele diz estar sendo perseguido
Colégio Estadual Américo Antunes, em Goiás Foto: Reprodução Facebook
Colégio Estadual Américo Antunes, em Goiás Foto: Reprodução Facebook

RIO — No dia 27 de fevereiro, os alunos do Colégio Estadual Militar Américo Antunes, em São Luís de Montes Belos (GO), estavam perfilados para cantar o Hino Nacional quando o diretor da unidade, o capitão da PM Eduardo Alves Pereira Filho, leu a carta enviada pelo ministro da Educação , Ricardo Vélez Rodríguez, na qual constava o slogan de campanha do presidente Jair Bolsonaro.

Após o ato, o diretor perguntou se alguém gostaria de se manifestar, e o professor de geografia Wellington Divino Pereira, de 39 anos, pediu a palavra para repreender a leitura do documento — que o próprio ministério havia corrigido um dia antes, reconhecendo o equívoco na inclusão do slogan "Brasil acima de tudo. Deus acima de todos".

Poucos dias depois, em 8 de março, foi emitida uma ordem de afastamento do professor da escola. Ele ficará 60 dias fora de atividade até ser deslocado para outra unidade.

— Eu disse que não era correto ler slogan de campanha e que a filmagem dos alunos (pedida pelo MEC na carta inicial e depois revogada) também só poderia ser feita com autorização dos pais — diz Pereira. — Ele ficou muito irritado, falou que era militar e que aquele colégio nunca teria socialista, que a nossa bandeira não é vermelha e que as portas estavam abertas para quem quisesse sair.

O Colégio Estadual Américo Antunes era uma escola regular que passou por um processo de militarização, no qual a gestão é compartilhada com a PM. Nesse modelo, os oficiais costumam ficar responsáveis pela parte disciplinar e a Secretaria de Educação, pela parte pedagógica.

A criação de escolas militarizadas é uma das propostas prioritárias do governo de Jair Bolsonaro para a educação, embora o MEC ainda não tenha apresentado uma proposta concreta para a implementação do modelo.

'Não cumpriu o protocolo'

Além do episódio do Hino, a direção da escola relatou que pais de alunos queixaram-se de que o professor, por ser ateu, estaria influenciando seus filhos a questionarem a própria religião.

Para apurar o caso, a Coordenação Regional de Educação de São Luís de Montes Belos ouviu Pereira, o coordenador pedagógico da escola e outros dois professores, e produziu um relatório que embasou a decisão de afastar o docente.

No documento, o coordenador pedagógico da escola diz que Pereira "não cumpriu o protocolo ao se dirigir ao diretor comandante" e "tem dificuldade em seguir regras".

Afirma ainda que o professor "possui bom domínio de sala e de conteúdo, porém tem tido muitas dificuldades com seu posicionamento político-religioso em sala", o que gerou queixas de familiares de alunos.

No documento, a coordenação relata que Pereira negou as acusações e afirmou que fazia discussões pertinentes à sua área de atuação, a Geografia e a Sociologia:

"Alegou ainda ser um professor crítico e que hoje esse conceito se refere a professor doutrinador marxista ou esquerdista. Diante de sua fala, foi questionado quanto a sentir-se bem em trabalhar em uma escola militar, com regras e normas, onde esse perfil crítico que alega possuir é visto de forma contrária ao perfil de professor de escola militar."

O texto da coordenação também afirma que o ocorrido havia "gerado clima de constrangimento entre professores, direção, alunos e pais de alunos". À coordenação, o professor afirmou que não desejava pedir remoção para outro colégio.

Abaixo-assinado proibido

Em entrevista ao GLOBO, Pereira afirmou que vinha sofrendo sanções na escola desde o ano passado — era coordenador da área de humanas, mas perdeu o cargo no fim de 2018. Relevou o episódio por considerar prerrogativa do diretor escolher seus coordenadores.

Segundo ele, o clima tenso com a direção se acentuou a partir do início das atividades de 2019. Após o afastamento, alunos teriam sido impedidos de fazer um abaixo-assinado pedindo seu retorno.

— Eu percebi que a perseguição em cima do meu trabalho aumentou. Fui chamado para prestar esclarecimentos na coordenação regional e disse que estou baseado nos conteúdos curriculares do estado de Goiás. Agora vou ser removido como se tivesse culpa do que me acusam. Fui impedido de exercer minha atividade de professor — diz Pereira, que pretende entrar com uma ação por danos morais.

Informado sobre o caso, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás (Sintego) enviou relatório à Secretaria de Educação afirmando que o professor teria sido pressionado pela coordenação a pedir a remoção do cargo por conta própria.

O GLOBO entrou em contato com a pasta e com a direção do colégio para pedir um posicionamento sobre o tema, mas ainda não obteve resposta.

'Afastamento não é penalidade'

A Secretaria de Estado da Educação de Goiás informa que instaurou um processo investigativo para analisar se houve "ato de transgressão administrativa". Acrescentou, em nota, que "não existe penalidade ou acusação nesse procedimento (de afastamento do professor), apenas a busca pela elucidação dos fatos".

Ainda segundo a secretaria, a medida cautelar de afastamento preventivo está prevista em lei e pode ser aplicadsa para investigações sem ingerências externas, "prevenindo a incolumidade de provas e pessoas, incluindo servidores, testemunhas, comunidade e o próprio investigado".

Na nota, o órgão informou que "a decisão foi tomada para que não haja uma desordem administrativa na unidade escolar, com conflitos durante a investigação, além de preservar  todos os envolvidos".