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Opinião

Prioridade absoluta a crianças e adolescentes na volta às aulas

Nossos estudantes  não podem ser bandeiras políticas

Existe um artigo na Constituição da República de 1988 que deve orientar famílias, sociedade e o Estado como um farol a brilhar sempre, inclusive na escuridão do momento pandêmico que vivemos: o artigo 227. Todos devemos ter esse dispositivo como mantra: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

E por que esse tratamento prioritário?

Para responder, trazemos aqui reflexões do sociólogo argentino Eduardo Bustelo no sentido de que a relação mais desigual existente em nossa sociedade não é aquela baseada nas classes, gênero ou raça, mas sim aquela estabelecida entre adultos e crianças. Crianças são consideradas civilmente incapazes e devem ser representadas em suas vontades e desejos pelos adultos. Um dos poucos locais que promovem a sua participação como sujeitos de direitos é o ambiente escolar moderno.

As escolas constituem fator de proteção e de promoção de direitos da criança fora do contexto familiar. Além do conteúdo cognitivo que espera ser alcançado com a frequência escolar, tantos outros são desenvolvidos nesse espaço comunitário através das interações sociais que só ocorrem dentro da escola, como relações de amizade, confiança, brincadeiras, resiliência, propiciando o bem-estar físico e mental dos alunos.

Um vírus novo provocou uma reviravolta e desorientou a todos no mundo inteiro. Pesquisas e estudos de todos os lados surgiram e se avolumam dia após dia, num esforço da ciência de desvendá-lo. Difícil acompanhar tudo. Muitos, porém, embasaram o retorno das atividades comerciais, como bares, restaurantes, casas de festas e hotéis, segundo protocolos sanitários para controlar a disseminação viral.

Para essa reabertura, diversos lobbies se fizeram presentes, forçando a retomada gradual dos setores da economia. Com relação à escola das crianças, quem faz esse lobby? Onde está a escuta das crianças para que sejam consideradas cidadãs e tenham a prioridade absoluta de seu direito à educação respeitado?

Não precisamos discorrer mais do que um parágrafo para afirmar que a educação é atividade essencial do Estado e que somente através da educação de qualidade para todos conseguiremos uma sociedade mais justa, menos desigual e com oportunidades de desenvolvimento para todos.

Também consideramos desnecessário desgastar o leitor para convencê-lo de que o ensino on-line de crianças está longe de atender aos seus interesses e se tornar um método pedagógico de verdadeira construção de conhecimento. Quem tiver filhos, dê seu depoimento. Ademais, na primeira infância, o ensino através de telas é inócuo e pode ser prejudicial ao seu desenvolvimento. Além disso, a escola constitui um espaço de promoção de outros direitos igualmente protegidos constitucionalmente, como a saúde, a segurança alimentar, o lazer, a cultura, a dignidade e a convivência comunitária.

Neste ano sem precedentes e nos que se seguirão, recomendamos aos gestores, famílias, professores, sindicatos, médicos, advogados etc. que o artigo 227, caput, da Constituição Federal seja a leitura de cabeceira antes de qualquer decisão. Nossas crianças não podem se constituir em bandeiras políticas, não podem ser as últimas a terem seus direitos atendidos, não podem acordar todo dia com a insegurança de voltar ou não à escola. Afinal, é aos direitos delas que a nossa Constituição assegurou a única prioridade absoluta.

Por fim, questionamos se as prioridades de reabertura não retratam, além da desigualdade de poder das crianças, a latente desigualdade de gênero de nossa sociedade, na medida em que a maioria das crianças que estão alijadas da escola encontra-se confinada em suas casas, sendo cuidadas majoritariamente por mulheres.

Viviane Alves e Luciana Grumbach são promotoras de Justiça