Brasil Coronavírus

Primeiros de suas famílias a irem para a universidade, milhões de alunos da América Latina abandonaram estudos na pandemia

Êxodo ameaça décadas de conquistas que ajudaram a tirar comunidades inteiras da pobreza e prometiam mudar a região
Lina Pietro e sua filha, Luna, em sua casa, em Bogotá, na Colômbia. A jovem de 30 anos perdeu seu emprego durante a pandemia e não tem mais como continuar seus estudos. Foto: FEDERICO RIOS / NYT
Lina Pietro e sua filha, Luna, em sua casa, em Bogotá, na Colômbia. A jovem de 30 anos perdeu seu emprego durante a pandemia e não tem mais como continuar seus estudos. Foto: FEDERICO RIOS / NYT

BOGOTÁ — A mãe, faxineira, nunca passou do segundo ano do ensino fundamental. Seu pai, um policial, não concluiu o ensino médio. Mas Lina Prieto conquistou uma vaga no programa de redação da mais prestigiosa universidade pública da Colômbia. Seu objetivo — escrever o próximo grande romance latino-americano — parecia próximo.

Leia mais: Pandemia faz estudantes deixarem a rede privada, além de derrubar arrecadação que sustenta a educação pública

Nas últimas duas décadas, milhões de jovens latino-americanos se tornaram os primeiros em suas famílias a irem para a faculdade, uma conquista histórica que prometia trazer uma geração para a classe profissional e transformar a região.

Mas, enquanto a pandemia toma conta da América Latina, matando centenas de milhares de pessoas e devastando economias, um retrocesso alarmante está ocorrendo: milhões de estudantes universitários desistem de seus cursos, segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

O êxodo ameaça décadas de conquistas que ajudaram a tirar comunidades inteiras da pobreza. E é um enorme retrocesso para uma região que luta para escapar de sua armadilha secular — a dependência muitas vezes destrutiva da exportação de matérias-primas — e caminhar em direção a uma economia baseada no conhecimento.

E ainda: Pelo menos 5,7 milhões de estudantes precisam pagar internet para ter aula na rede pública

Prieto, uma mãe solteira de 30 anos que ajuda no sustento dos pais, perdeu o emprego como recepcionista. Incapaz de se manter na faculdade, ela abandonou o curso e também perdeu a vaga de sua filha na pré-escola da universidade.

— Este ano para mim foi o ano. E tudo desmoronou — disse.

Desde o início dos anos 2000, grandes investimentos regionais ajudaram a matricular no ensino superior em toda a América Latina mais que o dobro de alunos até então, passando de 20% para mais de 50% da população em idade universitária, de acordo com o Banco Mundial.

A expansão permitiu que milhões de grupos antes excluídos, incluindo estudantes indígenas, rurais e negros, ingressassem na universidade.

— Estávamos saindo de uma trajetória positiva, estávamos mudando a narrativa — disse Sandra García, pesquisadora colombiana que estuda educação na era da Covid-19 para as Nações Unidas. — E esta grande queda vai pôr um fim a grande parte desse progresso.

Dinheiro investido em plano de internet em vez de comida

Em meio à quarentena, o desemprego juvenil disparou e muitos estudantes não conseguem pagar as mensalidades, que, mesmo nas universidades públicas, podem custar de uma a oito vezes o salário mínimo mensal.

A maioria dos cursos agora é online, mas milhões de pessoas não têm internet, nem mesmo uma conexão confiável de celular.

Na principal universidade pedagógica da Colômbia, o reitor Leonardo Fabio Martínez disse que até metade dos alunos da universidade podem desistir este ano, levantando questões sobre quem vai ensinar a próxima geração de alunos do ensino fundamental.

Em uma universidade pública da cidade de Manizales, uma professora disse que conectar seus alunos de arquitetura à internet por meio de telefones celulares para um único dia de aula custa o equivalente a uma semana de gastos com comida.

Alguns alunos disseram que estavam passando fome para pagar pelos planos de dados, enquanto outros se escondiam nas escadas de seus prédios para capturar melhor o wi-fi de seus vizinhos e digitaram a lição de casa em seus celulares. Mas, ao tentarem enviar o conteúdo, não conseguiam.

Gabriela Delgado toca violocelo em meio a acampamento de estudantes que protestavam por ajuda financeira do governo colombiano para custear seus estudos universitários durante a crise da Covid-19. Foto: FEDERICO RIOS / NYT
Gabriela Delgado toca violocelo em meio a acampamento de estudantes que protestavam por ajuda financeira do governo colombiano para custear seus estudos universitários durante a crise da Covid-19. Foto: FEDERICO RIOS / NYT

As mulheres jovens, em particular, enfrentam as maiores taxas de desemprego do país. Alguns recorreram ao chamado trabalho de webcam, em que praticam atos sexuais na Internet em troca de dinheiro.

— Tenho que pagar meus estudos e sustentar minha casa, pagar contas, comida, sustentar minha mãe e minhas duas irmãs — disse uma das alunas, que perdeu o emprego em meio à crise e se voltou para a internet “em um momento de desespero”.

Na Universidade Nacional, uma prestigiosa universidade pública da capital, Bogotá, vários estudantes fizeram greve de fome em 10 de agosto, acampados em uma dúzia de barracas no campus vazio para pedir ao governo para cobrir suas mensalidades, já que suas famílias chegaram ao fundo do poço.

— Não vejo outra opção para pagar o semestre inteiro — disse Gabriela Delgado, uma estudante de música de 22 anos que participou da greve de fome.

Durante semanas, ela dormiu em uma tenda entre a faculdade de economia e a faculdade de ciências humanas, e passou por exames médicos diários feitos por um voluntário. Quando ela tinha energia, pegava seu violoncelo e tocava fragmentos de Bach para seus colegas manifestantes.

A greve terminou em 28 de agosto sem que o governo acatasse seus pedidos.