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Presencial ou Remoto: Para Onde Estão Indo os Ingressantes do Nosso Ensino Superior?

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Por Roberto Lobo

Presencial ou Remoto: Para Onde Estão Indo os Ingressantes do Nosso Ensino Superior?

Uma Reflexão e um Alerta

 

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Roberto Lobo                                                                    19 de outubro de 2023

 

Respondendo a uma pergunta bastante relevante que me foi feita recentemente, relativa às circunstâncias que têm contribuído para a queda de ingressantes nas universidades federais nos últimos anos, busquei dados nas Sinopses Estatísticas da Educação Superior elaborada pelo INEP para os anos de 2018 a 2022.

O motivo que parecia mais pertinente era uma possível queda da demanda pelo ensino superior, talvez pelo empobrecimento da população, falta de estímulo para investir o tempo para cursar o ensino superior ou, até mesmo, um descrédito no diploma como elemento da ascensão social (ainda que este último não se confirme em alguns estudos sobre o assunto).

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Os dados do INEP contradizem estas hipóteses, mas talvez levantem outras que merecem ser analisadas em profundidade e sem preconceitos.

Vamos, inicialmente, analisar a situação das universidades, um diploma considerado, em geral, mais prestigioso. Em 2018 ingressaram 2.072.619 estudantes no total dos cursos presenciais no ensino superior, sendo 269.739 em universidades federais, 122.182, em universidades estaduais, 7477 nas universidades municipais e 536.601 nas universidades privadas.

Em 2022 foram 1.656.172 ingressantes em cursos presenciais, sendo 235.702 nas universidades federais, 98.621 nas estaduais, 12.351 nas municipais e 598.636 nas privadas, a maioria em universidades com fins lucrativos.

QUEDA DE INGRESSANTES NAS GRADUAÇÕES PRESENCIAIS:

Total = redução de 20% de 20218 para 2022

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Universidades Federais = -12,6%

Universidades Estaduais = -19,3%

Universidades Municipais = 65%

Universidades Privadas= 11%

Somente as universidades municipais cresceram no número de ingressantes para o ensino presencial no conjunto das universidades públicas brasileiras. Entretanto o contingente total desse segmento é o menor entre as IES públicas, gerando um impacto final pequeno.

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As universidades privadas também tiveram um aumento, embora menor, de 11,5%.

As hipóteses mencionadas acima parecem fazer sentido, mas vamos dar um passo adiante. No ensino a distância em geral, incluindo todas as IES, a situação é bem diferente:

O total de ingressantes em cursos ministrados na modalidade de EaD no Brasil mostra que entraram para cursar esta modalidade 1.373.321 alunos em 2018 contra 3.100.553 alunos em 2022.

Os ingressantes nas universidades federais nesta modalidade EaD passaram de 18.704, em 2018, para 17.041 em 2022, enquanto nas universidades estaduais foram de 39.444 para 41.044, nas municipais de 1.041 para 1.395 e, a grande modificação no perfil dos ingressantes repousa nas universidades privadas que passaram de 797.523 em 2018 para 1.765.372 em 2022, um salto de 55%, correspondendo a 57% de todas as matrículas em EaD no ano passado.

Olhando em perspectiva de prazo maior, verificamos que o número de ingressantes no ensino superior presencial foi de 2.225.663 alunos em 2015 para 1.656.172 em 2022 (redução de 34%), enquanto o total dos ingressantes em cursos em EaD passou de 654.559 em 2015 para 3.100.553 em 2022 (crescimento de 373%). A diferença de tendências nas duas modalidades salta aos olhos.

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Para ilustrar a rápida mudança de orientação dos interesses dos estudantes vamos apresentar um exemplo bem típico: buscamos uma graduação que prepare explicitamente seus formados para o mercado de trabalho e escolhemos o curso de Administração, por não necessitar de laboratórios especializados e, por isso, ter seu reconhecimento no MEC mais facilmente obtido.

Em 2014 ingressaram em cursos de Administração no Brasil 189.737 estudantes para cursos presenciais e 86.781 para cursos a distância. Já em 2020 nos cursos presenciais ingressaram 86.502 alunos e para cursos de Administração a distância foram 163.214 ingressantes. Inverteu-se a tendência! Tendência essa que se alastra por todos os cursos com exceção dos tradicionais como Medicina e Direito, que vê os pedidos de cursos de ensino a distância ainda contestados pelos Conselhos Profissionais.

A mudança de perfil é dramática. A massa de novos estudantes buscou cursos a distância e, a grande maioria, em cursos das universidades privadas (a imensa maioria dos ingressos em universidades com fins lucrativos).

Parte disso pode ser ainda reflexo da pandemia, quando a maioria dos cursos passou a ser oferecida na modalidade virtual, tanto no ensino médio quanto no universitário e, na volta dos alunos, ou no ingresso dos novos no ensino superior, os estudantes decidiram optar por essa modalidade de ensino para a qual já estavam adaptados.

Por que não procuraram esta modalidade nas universidades públicas? Uma possível razão é que nossas IES públicas não expandiram suas vagas neste tipo de ensino.

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As instituições públicas, por sua credibilidade e tradição de exigências para ingresso em seus cursos, acabam afugentando (em especial nos anos mais recentes) estudantes que não se sentem preparados para enfrentar as dificuldades de um ensino mais exigente e que, em seus próprios relatos, acreditam que nada aprenderam no ensino médio durante a pandemia, quando o ensino passou abruptamente de presencial para remoto. Eles próprios confirmam estas dificuldades em entrevistas.

O Estado de Minas apresentou uma matéria sobre a queda de demanda do ENEM cujo título era "Enem 2022: O que explica a fuga de alunos e o esvaziamento do exame?"

Diz o artigo:

"Ano após ano, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) mostra uma crescente evasão no número de jovens que disputam o acesso às universidades. Não é à toa que os 3,4 milhões de inscritos na edição deste ano representam um dos menores volumes em mais de uma década, desde que o exame se tornou a principal porta de entrada para o ensino superior no país".

Neste ano, 2022, 3.476.226 pessoas se inscreveram nos dois modelos do Enem, impresso e digital. São 5.325.616 a menos do que em 2014, ano em que o exame atingiu a maior quantidade de candidatos: 8.722.248. Uma redução de quase 61%.

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As inscrições para as provas de 2022 ficam atrás até mesmo do período anterior ao formato atual da prova. Em 2008, quando o objetivo do exame era apenas testar os conhecimentos dos concluintes do ensino médio, foram registradas 4.018.070 inscrições. Foi somente a partir de 2009 que o Enem passou a valer como processo seletivo para as principais universidades públicas do país. E os números começaram a despencar a partir de 2017.

A matéria continua com a estudante Camila Natália Santos, de 17 anos, que está no segundo ano do ensino médio, mas, apesar da proximidade da conclusão dessa fase da vida escolar, não tem expectativa de prestar o Enem. Ela relata se sentir atrasada depois de passar quase dois anos estudando em casa. "Ninguém aprendeu nada. Todo mundo passou, porque olhava na internet e fazia as atividades em cima disso. Eu mesma fui uma dessas pessoas. Mas, se perguntar hoje, ninguém sabe o que aprendeu, não sabe fazer uma conta. Foi uma situação que prejudicou todos", avalia, em tom de desânimo.

A professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Ana Karina Brenner prestou o seguinte depoimento em entrevista à Agência Brasil: "É uma questão multifatorial e estrutural. Vem caindo desde 2015, mas recuou mais acentuadamente a partir de 2017, quando o Enem deixou de ter a dupla função que ele tinha: de avaliador que pontuava para dar ingresso ao ensino superior e também de certificador de conclusão do ensino médio. Tinha muita gente que se inscrevia para fazer o Enem não porque estava disputando uma vaga no ensino superior, mas porque estava tentando se certificar para o ensino médio, que era um diploma importante para abrir portas para o mercado de trabalho", explicou Ana Karina.

A evolução do ensino superior brasileiro vem sofrendo enormes transformações, nem sempre bem acolhidas pelos profissionais da educação. Seria muito necessário um estudo isento e profundo destas transformações e das novas perspectivas que se abrem, a partir da configuração atual e de seus eixos de crescimento.

Em 1997, Clayton Christensen, pesquisador da Universidade de Harvard publicou um livro que ficaria célebre, intitulado "O Dilema da Inovação[1]". Nele, o autor trata das tecnologias disruptivas que começam sem a sofisticação das empresas líderes do mercado, buscando nichos com menos exigências e que necessitam menor investimento para gerar uma tecnologia capaz de atender uma parte da demanda por produtos menos sofisticados do que os existentes no mercado a preços muito mais baixos.

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Com a aceitação do produto por clientes antes desatendidos pelas empresas tradicionais, as empresas disruptivas crescem, se capitalizam e, mais tarde, utilizam os conhecimentos do mercado e os desenvolvimentos tecnológicos obtidos ao longo de seus crescimentos e lançam produtos novos que desalojam, no médio prazo, as empresas tradicionais. Alguma semelhança com o ensino a distância?

Mais tarde, o mesmo autor lançou o livro "Inovação na Sala de Aula"[2], que trata de quê? Trata da EaD como tecnologia disruptiva na educação. É o que já vemos, mesmo que muitos de nós ainda desconfiemos de sua eficácia.

A EaD radical, sem atividade presencial, como ocorre em vários sistemas, inclusive o sistema híbrido, traz consigo inegáveis vantagens, mas também muitos inconvenientes, como falta de ligação pessoal entre colegas e entre estudantes e professores.

Perdem os estudantes o convívio pessoal com seus professores que, se forem mestres - na melhor acepção da palavra - poderiam influir radicalmente na vida de seus alunos (para o bem ou para o mal, mas estamos tratando do bem...), perde-se também, em boa parte, a intimidade entre colegas que gerará, na maioria dos casos, uma importante rede profissional para futuro do egresso.

Por que esse boom da EaD e a procura pelos estudantes das universidades privadas que oferecem este tipo de ensino?

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  • A EaD no Brasil, por parte das grandes universidades privadas é de baixo custo, evitando os problemas enfrentados pelos estudantes que temem a concorrência para ingressar em uma universidade pública e que não têm recursos para pagar uma universidade privada presencial tradicional, ou temem os juros dos financiamentos (nos EUA a dívida estudantil é um dos maiores setores financeiros de endividamento da população);
  • Por outro lado, há quem diga que pais mais exigentes reclamam da doutrinação nas universidades públicas e da sucessão de greves e manifestações políticas inconsequentes que acontecem cada vez mais nestas instituições e não querem expor seus filhos a esses ambientes;
  • Com a péssima qualidade da grande maioria das escolas de ensino médio (públicas principalmente) uma parte importante dos alunos egressos do segundo grau não se acha capaz de ter sucesso em um curso de graduação exigente;
  • O diploma universitário continua, no entanto, no imaginário dos estudantes, como sendo a mais segura forma de ascensão social (mais garantido, mas menos explosivo do que um influencer bem sucedido). Segundo dados recentes do SEMESP[3], de 2019, mostram que um profissional de nível superior ganha em média três vezes o salário de trabalhadores com ensino médio.

No Brasil, observa-se que o grande crescimento do ensino universitário na modalidade de EaD resultou em uma queda da qualidade dos egressos, se medimos este dado pelos resultados do ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes).

Se, há alguns anos atrás, havia muito pouca diferença entre estudantes de cursos presenciais e em EaD, a diferença de desempenho hoje é de cerca de 40% do desvio padrão a favor dos cursos presenciais[4], isto é, deixou de ser um efeito pequeno e pouco relevante para ser um efeito que não deve mais ser ignorado.

É importante reconhecer que vários cursos na modalidade de EaD obtiveram bons resultados no ENADE, (notas 4 e 5), correspondendo a 15% do total de cursos ministrados nesta modalidade de ensino, mas contra 28% dos cursos presenciais com o mesmo desempenho.

A crescente separação entre desempenhos nas duas modalidades de ensino pode ser também decorrência do grau de exigência entre essas duas modalidades, muito mais benevolente nos cursos em EaD?

A ausência de diferenciação dos diplomas presencias e de EaD não contribuem para esse cenário?

A facilidade de atender os critérios para abertura de um curso de EaD (muito menor em termos de exigências de todo tipo do que os existentes para abrir um curso presencial) e seu sistema de fiscalização não estimulam esse resultado?

Por que nos países desenvolvidos a EaD no ensino superior não tem nem essa proporção, nem esses resultados tão piores?

A estratégia que os estudantes pouco qualificados adotam para seu futuro parece ser: ingressar em uma "universidade" privada na modalidade de EaD que seja barato e pouco exigente, esperando que a mera exibição de um diploma universitário abrirá as portas para um futuro promissor. Será mesmo?

Esse futuro é o que o Brasil deveria almejar?

 

 

 

[1] Makron Books

[2] Tradução lançada pela Artmed, em 2008,

[3] Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino no Estado de São Paulo

[4] A partir dos dados de Aline Vessori no Jornal da UNESP, setembro 2022, "É hora de reformular sistema de ensino a distância, defendem professores"

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