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Presença da redação não é unanimidade

Risco de subjetividade, complexidade e custo do processo de avaliação são tidos como pontos vulneráveis

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Por Estadão Blue Studio
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Fazer uma redação considerada excelente no Enem, com nota acima de 900 pontos num máximo possível de 1.000, é um patamar que 197.083 candidatos conseguiram no ano passado – 8,3% do total de participantes. Já as redações que recebem a nota máxima são raríssimas: foram apenas 32 casos em todo o Brasil, curiosamente concentrados nos Estados do Rio de Janeiro (12 casos) e Minas Gerais (sete). Além desses, São Paulo e Ceará tiveram duas redações nota 1.000 e as demais se espalharam por outras nove unidades da Federação.

Divulgação Foto: Willie B. Thomas

O desafio apresentado aos candidatos é desenvolver um texto com tamanho entre sete e 30 linhas e perfil dissertativo-argumentativo, a partir de uma situação-problema. Na edição de 2023, o tema foi “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”, bem mais específico do que o singelo “Viver e aprender” do primeiro Enem, em 1998. Entre os dois extremos, o exame passou por grandes problemas da sociedade brasileira, como a preservação ambiental (2001 e 2008), a liberdade de informação (2004), o trabalho infantil (2005), o racismo (2016) e a valorização das comunidades e povos tradicionais (2022).

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Quando se analisam as redações nota 1.000 do Enem do ano passado, que teve como tema “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”, percebe-se que muitas seguem um formato mais ou menos padrão, amplamente disseminado em cursinhos e vídeos do YouTube. Na maioria dos casos, o texto começa com uma referência a livro, canção, filme ou série. Alguns exemplos: “No livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Ailton Krenak critica o distanciamento entre a população brasileira como um todo e a natureza”; “Na série brasileira Cidade Invisível, parte da trama é composta por uma população ribeirinha”; “Na música Imagine, de John Lennon, é retratada uma sociedade que se une, apesar das diferenças culturais, a fim de alcançar a felicidade”.

Um bom começo ajuda, mas certamente não é tudo. De acordo com explicação do Inep, numa boa redação “as ideias precisam estar embasadas por explicações fundamentadas e argumentações sobre o assunto”. Espera-se que o candidato demonstre a capacidade de pensar, articular conhecimentos e tomar posição. Ganha nota zero quem não seguir a estrutura dissertativa-argumentativa proposta, produzir um texto sem conexão com o tema proposto, desrespeitar a seriedade do exame ou não alcançar o mínimo de sete linhas.

Indução à leitura

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A redação registrou evolução expressiva na nota média nos últimos dez anos do Enem, passando de 509,36 para 652,45. “Como as demais partes da prova não registraram uma evolução tão grande nesse mesmo período e o grau de subjetividade tende a ser maior quando se avalia a redação, eu não afirmaria que isso é indício de que os jovens brasileiros estão escrevendo melhor. Pode ser reflexo de uma certa flutuação dos critérios”, diz Romualdo Portela de Oliveira, do Cenpec. Como indício desse tipo de flutuação, ele cita experimentos em que avaliadores de redação que corrigiam um grande número de provas não voltavam a dar a mesma nota ao deparar novamente com a primeira da série.

Para João Batista de Oliveira, ex-secretário executivo do Ministério da Educação e fundador do Instituto Alfa e Beto, a redação deveria ser retirada do Enem, por ser um processo complexo, proporcionalmente mais caro – em decorrência das peculiaridades da correção – e mais suscetível a subjetividades, que podem incluir até questões ideológicas. “Considero que o Enem não seja, de forma geral, o melhor instrumento para a função de selecionar candidatos, porque tem uma calibração precária. Uma diferença pequena na nota pode fazer grande diferença para o futuro da pessoa, e a redação é justamente o ponto em que esse tipo de injustiça tem mais chance de ocorrer”, ele analisa.

Na visão de Oliveira, do Cenpec, mesmo com essas vulnerabilidades, a redação é um importante sinalizador para o ensino médio do tipo de competência que precisa ser valorizada. “O Enem tem o papel de induzir o comportamento do sistema de ensino. Seria um prejuízo muito grande tirar a redação do exame, considerando-se o tipo de formação que está sendo sinalizada ao ensino médio.”

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Katia Smole, do Instituto Reúna, concorda: “Os jovens precisam sair do ensino médio sabendo escrever bem, se comunicar, construir argumentação, atributos que serão importantes não só na universidade, mas vida afora. O Brasil vive uma crise de leitura e de escrita, e ter a redação no Enem certamente é um indutor dessas práticas”.

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