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Por que criar filhos sem ajuda externa é tão difícil para humanos

Nichola Raihani - Especial para a BBC

29/12/2021 19h48

O que as formigas e suricatas podem nos ensinar sobre criar filhos? A bióloga evolucionista Nichola Raihani desvenda os antigos instintos sociais que moldam nossas famílias até hoje.

Eu tirei o controle remoto das mãos dos meus filhos e me larguei no sofá, me preparando psicologicamente para o que estava por vir.

Era março de 2020, e inúmeros casos de um novo e perigoso coronavírus estavam aumentando rapidamente aqui no Reino Unido. Nosso primeiro-ministro estava prestes a anunciar um confinamento.

Escolas e creches iriam fechar. Como milhões de outros pais e mães, eu estava prestes a me tornar, na prática, a professora dos meus filhos pequenos. A ideia me apavorou.

Eu não era a única me sentindo dessa maneira. Meu telefone vibrava com as mensagens inundando o grupo da escola no WhatsApp, com pais imaginando como eles iriam encaixar as demandas de seus trabalhos diários no meio de locuções adverbiais e divisões longas.

Durante os meses que se seguiram, muitos pais sentiram um peso enorme sobre sua saúde mental e física. Vieram novos confinamentos e fechamentos de escolas, juntamente com relatos de um preocupante aumento nos níveis de estresse, ansiedade e depressão de pais.

Muitos se perguntavam por que isso era tão difícil. Nós não deveríamos ser naturalmente bons em criar nossos filhos sem ajuda externa? Afinal, nós, seres humanos, não nos virávamos bem sem escolas ou creches no passado?

Como bióloga evolucionista, eu não tenho respostas para todas as crises familiares relacionadas à pandemia, mas eu posso dizer uma coisa com certeza: como espécie, os humanos são espetacularmente mal equipados para lidar com a criação dos filhos em isolamento.

A partir de uma perspectiva evolucionista, não surpreende que muitos de nós tenhamos nos sentido tão sobrecarregados. Apesar da ideia comum de que uma família moderna consiste de unidades pequenas e independentes, a realidade é que nós frequentemente nos beneficiamos da ajuda de outros para criar nossos filhos.

Um por todos e todos por um

Durante grande parte da história humana, as chamadas famílias extensas (incluindo avós, tios e primos) ofereciam essa ajuda. Em sociedades industrializadas contemporâneas, em que unidades familiares menores são comuns, professores, babás e outros cuidadores nos permitiram reproduzir aquela antiga rede de apoio.

A forma colaborativa de criar filhos nos torna únicos entre os grandes primatas. Chamada de "criação cooperativa", ela é mais semelhante à maneira como as formigas ou as suricatas - espécies mais distantes do ser humano - vivem e nos deu vantagens evolutivas cruciais.

Espécies que criam sua prole de forma cooperativa vivem em grandes grupos familiares, em que indivíduos trabalham juntos para criar as crianças. Talvez surpreendentemente, outros primatas, como os chimpanzés, não criam seus filhos dessa maneira.

Embora humanos e chimpanzés vivam ambos em grupos sociais complexos, que compreendem parentes e membros sem ligação familiar, uma olhar mais atento revela algumas diferenças gritantes.

As mães chimpanzés criam seus filhos sozinhas, com pouca ou quase nenhuma ajuda de mais ninguém, nem mesmo do pai. O mesmo vale para gorilas, orangotangos e bonobos.

Mais: as primatas fêmeas não passam por uma menopausa fisiológica, o que significa que elas continuam férteis por toda sua vida. Como resultado, é relativamente comum uma mãe e uma filha estarem criando seus filhos ao mesmo tempo. Isso limita o potencial para que as avós ajudem na criação de seus netos.

Nós somos claramente diferentes. Durante a maior parte da nossa existência na Terra, nós humanos vivemos em unidades familiares extensas, em que as mães recebiam assistência de muitos outros integrantes da família. Em muitas sociedades humanas contemporâneas, isso ainda acontece.

Os homens envolvem-se com frequência na criação de seus filhos, embora a extensão da participação paternal varie bastante entre as sociedades. Os filhos pequenos também recebem educação de uma variedade de outros parentes, incluindo irmãos mais velhos, tias e tios, primos e, claro, avós.

Mesmo crianças pequenas podem assumir um papel vital em ajudar a sustentar e proteger bebês mais novos. Numa organização desse tipo, é muito raro que o peso de cuidar das crianças caia sobre apenas uma pessoa.

Crianças que ajudam

Abbey Page, uma antropóloga biológica que trabalhou extensivamente com os agta (ou aeta), uma sociedade de caçadores-coletores das Filipinas, diz que nós estamos apenas começando a entender a verdadeira extensão dessas redes de apoio tão tradicionais. Por exemplo, entre os agta, crianças de 4 anos de idade já são, frequentemente, membros produtivos da família.

"As contribuições das crianças sempre foram negligenciadas", diz Page. No passado, devido a conceitos estritos do que constitui trabalho e brincadeira, pesquisadores tendiam a não perceber que uma criança poderia estar brincando num momento e logo depois estar colhendo frutas na mata.

"As crianças estão claramente subsidiando a si mesmas [nessas sociedades de caçadores-coletores]", afirma ela.

As crianças agta também ajudam ao proteger seus irmãos mais novos de perigos. Page lembra quando estava sentada em uma cabana de uma família agta com um menino de 4 anos e sua irmã, ainda bebê.

Os três estavam sentados no chão quando entrou um escorpião. Page admite que ela ficou atordoada: "Eu não consegui ajudar de forma alguma". Felizmente, o menino sabia o que fazer: "Ele imediatamente pulou, pegou um pau da fogueira e esmagou o escorpião e em seguida pulou sobre ele algumas vezes". Esse simples ato potencialmente salvou a vida de sua irmã.

A experiência fez com que Page refletisse sobre o que pode ser considerado como cuidar de criança. No Ocidente, o cuidado infantil tipicamente significa que um adulto responsável, geralmente um dos pais, não apenas presta atenção na criança, mas proporciona intensivos engajamento e simulações.

Quando os pais não podem fazer isso, porque estão ocupados trabalhando, por exemplo, eles podem se sentir culpados ou inadequados. Mas a pesquisa de Page revelou muitas outras formas com que crianças podem ser assistidas e prosperar, sem um foco intenso apenas nos pais.

De fato, a assistência de irmãos, com os mais velhos ajudando a criar os mais novos, é uma característica marcante das espécies que praticam a criação cooperativa. As suricatas procuram comida que pode ser compartilhada com os mais novos e servem de babás de recém-nascidos na toca. Elas ensinam filhotes a operar perigosos itens de caça.

As fêmeas até produzem leite para alimentar seus irmãos mais novos. Assim como o menino que salvou sua irmã do escorpião, algumas das formas mais importantes de cuidado nessas sociedades cooperativas também envolvem proteger indivíduos mais jovens: mantê-los a salvo de predadores e fora de perigo.

Espécie resiliente

A criação cooperativa tem uma vantagem crucial sobre formas mais solitárias de criação dos filhos: pode tornar uma espécie mais resiliente - e provavelmente evoluiu como uma maneira de afastar adversidades.

Muitas espécies que praticam a criação cooperativa são encontradas nas regiões mais quentes e secas do planeta. Os primeiros humanos também habitavam regiões difíceis, onde não era fácil encontrar comida, que precisava ser encontrada, tirada de restos ou obtida com a morte de outro animal.

A colaboração era um pré-requisito para a sobrevivência numa forma que não é para grandes primatas contemporâneos.

Nossos primos primatas todos habitam ambientes relativamente estáveis e benignos - essencialmente, pratos gigantes de salada -, onde a comida de que eles precisam para sustentar a prole e eles mesmos é muito mais fácil de ser obtida.

Os seres humanos foram, aparentemente, os únicos primatas que sobreviveram nas regiões mais difíceis - não há registro de fósseis de outros grandes primatas nessas regiões.

Paradoxalmente, nossa tendência cooperativa, que nos permitiu sobreviver e prosperar por tanto tempo, pode ter tornado a atual crise da pandemia de covid muito mais dura, dos pontos de vista psicológico e prático.

Durante os confinamentos, nós fomos separados das nossas redes de apoio: os avós, tias e tios, mas também as escolas, creches e grupos de brincadeiras que nos ajudavam a reproduzir nossas antigas estruturas humanas em grupo.

Não apenas isso, mas houve uma expectativa de que nós retornássemos a nossas pequenas unidades familiares como se isso fosse uma coisa instintiva. Para muitos de nós, a sensação era de que isso era quase impossível, e não havia uma explicação verdadeira de por que a gente via a situação dessa forma.

Afinal, nossa noção ocidental de família coloca muita ênfase no cuidado maternal e muito pouca nas contribuições de outros membros da família. A expectativa era de que as mães e os pais, ou mesmo apenas as mães, sozinhas, seriam amplamente suficientes para cuidar dos filhos.

Entretanto, Segundo Rebecca Sear, professora de demografia evolucionária na London School of Hygiene and Tropical Medicine, no Reino Unido, essa ideia da família nuclear autossuficiente reflete as experiências e visões de mundo de pesquisadores ocidentais, em vez de uma realidade histórica.

A ideia da família nuclear, sustentada por um homem provedor dos recursos, tornou-se particularmente enraizada durante o período pós-Segunda Guerra Mundial, uma época em que "o ambiente acadêmico estava cheio de homens ricos, brancos, ocidentais que olhavam em volta, para suas próprias famílias, e simplesmente pensavam que sempre havia sido assim", afirma Sear.

Modelo recente

O termo "família nuclear" surgiu apenas nos anos 1920. Essa estrutura familiar em si, porém, centrada nos pais e um número relativamente pequeno de filhos, é mais antiga e pode estar ligada à Revolução Industrial, quando a mudança do trabalho no campo para a indústria permitiu a adoção de estilos de vida mais independentes.

Uma explicação alternativa é que políticas da igreja ocidental durante a Idade Média, que proibiram o casamento entre primos e outros membros da família extensa, fez com que as famílias encolhessem. Mas, embora a família nuclear seja um conceito tão onipresente na pesquisa e na cultura do Ocidente no século 20, incluindo inúmeros romances, filmes e programas de TV, Sear explica que ela pode ser considerada mais uma anomalia, mesmo no Ocidente.

"A coabitação de apenas os pais e seus filhos é algo relativamente raro mundo afora", afirma Sear. "Há muita variação nas estruturas familiares pelo mundo, mas o que é comum é que os pais recebem ajuda na criação dos filhos, e isso é verdade até mesmo nas classes médias ocidentais."

O arranjo típico para seres humanos não é um casal criando suas crianças de forma isolada, explica ela. Pelo contrário, nós geralmente precisamos e recebemos ajuda quando se trata de criar os filhos.

Tampouco a ideia das mulheres como mães e donas-de-casa é tão tradicional como às vezes muitos fazem parecer. Em sociedades de subsistência, históricas e contemporâneas, as mulheres exercem um papel significativo na produção do sustento das suas famílias. As mulheres também são provedoras.

Com essa perspectiva diferente da família humana, talvez nossas expectativas sobre como cuidar das crianças durante a pandemia tivessem sido diferentes. Em vez de supor que os pais, especialmente as mães, deveriam carregar (e carregariam) o peso, nós poderíamos ter reconhecido o papel crucial de outros membros da família e de cuidadores.

Com uma compreensão do quanto nós contamos uns com os outros para criar filhos, nós poderíamos ter sido mais pacientes com os outros - e com nós mesmos - quando enfrentamos dificuldades.

Esperar que os humanos criem filhos como os chimpanzés é um pouco como isolar uma formiga de sua colônia: nós não somos necessariamente feitos para isso - e, com frequência, isso não dá certo. Admitir que nós precisamos de outras pessoas não é um sinal de fracasso. É exatamente o que nos torna humanos.

* Nichola Raihani é professora de evolução e comportamento no University College London e autora de The Social Instinct: How Cooperation Shaped the World (O Instinto Social: Como a Cooperação Moldou o Mundo. Ela é @nicholaraihani no Twitter.


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