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ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Por que brasileiro não liga para privacidade dos dados? Psicanálise explica

Jake Oates/ Unsplash
Imagem: Jake Oates/ Unsplash

04/08/2021 04h00

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A LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), a nossa lei de segurança de dados, está em vigor e ganhou mais uma fase agora em agosto, com o início das punições.

A principal mudança com a lei diz respeito ao uso que as empresas fazem dos dados pessoais de clientes, que deve ser especificado por natureza e finalidade, não podendo ser reaproveitados em outros contextos. Surge a noção de "dado sensível", com informações sobre origem racial ou étnica, convicções religiosas, opiniões políticas, saúde ou vida sexual, bem como dados sobre crianças, que demanda condições de proteção maior.

Aspecto interessante é a presteza na prestação de contas, em caso de requisição ou queixa do usuário: 15 dias. Com exceção dos dados públicos, necessariamente transparentes, órgãos do Estado não podem repassar dados a empresas privadas. Anuncia-se também a criação de um órgão fiscalizador, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados,

A lei apesar de seguir o padrão europeu, de corte alemão, chega tarde e reflete no fundo o pouco interesse e preocupação dos brasileiros com a segurança de seus dados. Um dos motivos para nosso rápido crescimento cultural de uso de internet talvez seja a despreocupação com a segurança de nossa vida informática privada.

Somos o quarto país no mundo em usuários digitais, mas se considerarmos que China e Índia, que estão à nossa frente, possuem apenas 50% e 30% de sua população digitalizada, e o Brasil 70%, só perdemos proporcionalmente para os EUA .

As razões desta displicência talvez nos remetam a incidência distintiva e precária da fronteira entre esfera pública e privada, em nossa tradição democrática.

Digo que é uma incidência distintiva porque ricos e pobres percebem o espaço público de forma muito diversa. Enquanto os primeiros entendem que o público é uma extensão de suas casas, adquirida por direito, locação ou apropriação potencial, os segundos sentem que o espaço público já está ocupado e que se expande ruma a invadir suas vidas privadas.

Dois exemplos: pais de filhos em escolas particulares frequentemente não entendem que quando enviam seus filhos para a escola estão deixando que o Estado os eduque de forma, portanto, republicana. Como se o fato de pagar pela escola os tornasse sócios, proprietários, no fundo quase gestores. Como se os filhos e a escola se tornassem uma extensão deles mesmos.

Pais de filhos em escolas públicas, ao contrário, temem, regularmente, que os agentes públicos avancem e violem as próprias fronteiras de sua experiência privada. Observam seus filhos sofrerem batidas policiais constantes, onde seus corpos são examinados, quando não mortos por balas perdidas, assim como facilmente são responsabilizados, enquanto família, pelo mal desempenho escolar de seus filhos.

Moral da história: o público é terra a ser conquistada e ocupada pelos interesses privados dos ricos e fonte de temor de invasão da vida privada, quando para os pobres.

Neste sentido, a ideia de deixar seus dados disponíveis, segundo a regra de que "se o serviço é de graça o produto é você", não faz uma grande diferença, pois é sentida como se, pelo menos desta vez, a intrusão em nossa vida privada tivesse uma contrapartida que eu posso escolher.

Lembremos que os recursos mais utilizados pelos brasileiros são o envio de mensagens por WhatsApp, Skype ou Facebook Messenger (92%), redes sociais como Facebook ou Snapchat (76%), chamadas de vídeo por Skype ou WhatsApp (73%), acesso a serviços de governo eletrônico (68%), envio de e-mails (58%) e compras por comércio eletrônico (39%).

Chama a atenção que a relação com assuntos públicos seja mais importante que o comércio eletrônico (apesar do dado ter sofrido alteração substancial durante a pandemia) e que o uso de programas com suporte de voz e imagem seja tão alto, reflexo possível do analfabetismo funcional endêmico no país.

A ideia de "pagar" um serviço com os seus próprios dados se tornará um problema potencial apenas para aqueles cujos dados não devem ou não podem, afinal, aparecer de forma transparentes.

Ora, as três fontes principais de uso abuso de dados pessoais referem-se à formação de perfis de crédito, discriminando bons e maus pagadores, direcionamento segmentar de consumo, subsidiando campanhas e ofertas calculadas de produtos e manipulação política do Estado, de partidos ou da própria sociedade civil.

Cada um deles toca em um aspecto diferente, mas complementar de nossa subjetividade. O apego que temos ao nosso nome, como substância imaterial e ponto de convergência de nossa identidade, nos conecta com a série simbólica da filiação e da família.

O nome como condição de crédito é também fonte de reconhecimento fora da família, ou seja, no universo das trocas sociais, representado pela economia e expresso pelo, cada vez mais importante, "estilo de consumo".

Finalmente o nome é o que nos torna iguais diante da lei, impedindo favorecimentos e manipulações de nossa palavra, tornando-a insubstituível, espacialmente quando estamos no espaço público.

Passar a ser "alguém", tornar-se conhecido, lutar pela fama ou pela subcelebridade tornou-se um fator de segurança e proteção para uns e fator de desproteção para outros.

Segurança é um sentimento, não a realização objetiva de um estado de coisas. Uma das coisas que se sabe sobre percepção de segurança é que ela é diretamente desproporcional às medidas permanentes que tomamos para nos proteger.

Aquele que se dedica mais a cuidar das câmeras, das fechaduras, dos portões, das blindagens tende a se sentir menos seguro do que aquele que dispensa tais cuidados, sem nada de mais grave lhe tenha ocorrido, ainda que as condições objetivas sejam as mesmas.

Por isso, a segurança digital e as leis que nos facultam direitos nesta direção é bem-vinda, não apenas porque ela nos alerta para certos estados de insegurança virtual, vividos com indiferença, mas porque na individualização dos dados digitais está contido um processo de individualização, que para muitos ainda está longe de se realizar.

Para aqueles que só têm o nome a perder, antes da vida, o cuidado com os dados pode ser uma maneira de perceber a importância da própria biografia, ainda que seja como uma memória que pode ser usada contra você.

Recentemente o músico Keigo Oyamada, compositor do tema dos Jogos Olímpicos de Tóquio declinou da tarefa quando vieram a público que ele, quando era um colegial, teria maltratado um colega deficiente. Rastros como esse se tornam um peso para qualquer biografia. Ainda assim não há capítulo reservado ao direito de esquecimento na lei da segurança de dados.

A nova lei visa proteger liberdade de expressão, informação, comunicação e opinião, inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, mas ela é ainda ingênua quando pensa que a noção de "dado" presume um sujeito apegado apenas à sua identidade como patrimônio imaterial.

A LGPD não se manifesta em termos de prejuízos econômicos ou de circulação de ideias científicas ou cultura. Presa ao preconceito ingênuo de que a realidade é apenas a presença do que se dá no presente, como coleção de objetos e seus traços.

A lei não consegue reconhecer que direitos digitais envolvem uma política da memória bem como uma perspectivação dos dados futuros, que se pode inferir do passado.

Tais problemas foram abordados de maneira contundente e ágil nos livros recentemente lançados "Políticas da Imagem: vigilância e Resistência da Dadosfera", de Giselle Beiguelman, da editora UBU e em "A Superindústria do Imaginário: Como o Capital Transformou o Olhar em Trabalho e se Apropriou de Tudo Que É Invisível", de Eugênio Bucci, da Editora Autêntica, dos quais voltaremos a falar nesta coluna.