Por Luana Silva, G1 PB


Marina e Arthur se tornaram grandes amigos na escola — Foto: Mayra Bezerra/Arquivo pessoal

A educação de pessoas com deficiência foi tema de audiência pública do Supremo Tribunal Federal nesta segunda (23) e terça-feira (24). O objetivo do encontro foi debater o decreto 10.502, de 2020, do governo de Jair Bolsonaro, que alterou a política pública de ensino para crianças com deficiência. O decreto propõe a Política Nacional de Educação Especial e preocupa pais e especialistas em educação que avaliam a proposta como um retrocesso. Atualmente, o decreto está suspenso pelo STF, que ainda vai julgar o mérito no plenário.

O decreto não torna obrigatório que todas as crianças com deficiência estudem em escolas especiais, porém pode dificultar as matrículas em escolas regulares. Isso acontece porque os responsáveis pelas crianças com deficiência podem, por exemplo, ser aconselhados a procurar instituições especializadas ao tentar realizar a matrícula em uma escola comum.

Uma das pessoas preocupadas com esse decreto é Mayra Bezerra. A filha dela, Marina, de 9 anos, tem síndrome de down e, desde o começo da trajetória escolar, estuda no modelo misto, ou seja, com crianças que não possuem nenhum tipo de deficiência. No início de 2021, ela retornou às aulas presenciais.

Marina, de 9 anos, tem síndrome de down e estuda no modelo misto, ou seja, com crianças que não possuem nenhum tipo de deficiência — Foto: Mayra Bezerra/Arquivo pessoal

Esperta e alegre, Marina, que está no 2º ano do ensino fundamental, compartilha nas redes sociais sua rotina com a família e amigos. Um desses amigos é Arthur de Sá, de 8 anos, que não possui deficiência. Eles se conheceram na escola, no 1º ano, e a amizade dos dois fez com que as mães, Mayra Bezerra e Paulyane Sá, se tornassem amigas.

Marina afirmou ao G1 que gosta do colégio onde estuda e ama os amiguinhos com quem compartilha a sala de aula. E lembra com muita alegria de Arthur, de quem recorda que ganhou uma bolsa rosa. "Amo vocês, amigos de mamãe!", disse.

Marina, de 9 anos, tem síndrome de down, estuda no modelo misto e diz que ama os colegas de escola

Marina, de 9 anos, tem síndrome de down, estuda no modelo misto e diz que ama os colegas de escola

Segundo Arthur, ser amigo de Marina é muito divertido e eles adoram brincar juntos. “Eu adoro ser amigo de Marina, a gente brinca de pega-pega e de se esconder! Eu gosto muito dela, pois somos amigos há muito tempo, desde o primeiro ano”, afirmou.

Para a mãe de Arthur, Paulyane, a amizade com Marina traz muitos benefícios para o desenvolvimento também do filho dela. "Essa amizade o influencia positivamente, pois ele aprende que existem diferenças e que elas não atrapalham em nada na convivência e na interação. Ele está sempre disposto a ajudar todos os amiguinhos que precisem de algo", ressaltou.

Marina teve aulas remotas por causa da pandemia, mas já retornou à sala de aula em 2021 — Foto: Mayra Bezerra/Arquivo pessoal

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Convivência de crianças com e sem deficiência pode ser prejudicada

A construção de amizades como a de Marina e de Arthur pode ser prejudicada pelo decreto 10.502, pois sugere a criação de escolas específicas para crianças com diversos tipos de deficiência.

Mayra avalia a proposta como uma perda. “Seria retroagir em tudo que avançamos e conquistamos até agora, inclusive com o estatuto da pessoa com deficiência. Isolar as crianças com deficiência é uma perda porque elas aprendem com todos”, relatou a mãe de Marina.

A pedagoga Rosângela Régia trabalha com pessoas com deficiência há 14 anos. Atualmente faz parte da diretoria da Ame Down e coordena o grupo Anima, composto por 26 jovens com síndrome de down e deficiência intelectual. Para ela, separar as crianças com deficiência, além de ser uma prática retrógrada, do final do século XVIII, compromete o desenvolvimento, pois as crianças aprendem por repetição.

“Estudos comprovam que aprendemos por repetição e aqui vamos buscar a fundamentação na ABA [em português: análise do comportamento aplicada]. A escola é um espaço rico em aprendizagem coletiva, e separar pessoas significa uma segregação e volta à educação separatista apresentada no final do século XVII”, afirmou a pedagoga.

Rosângela ressalta que a educação no modelo inclusivo traz benefícios para todos. Dos professores, que aprendem a trabalhar metodologias que respeitam as diferenças e ritmo de cada aluno, aos estudantes sem deficiência, que aprendem sobre empatia e respeito na prática

“A inclusão de PcD em sala de aula regular ensina ao professor a planejar e buscar estratégias que contemplem os vários ritmos de aprendizagem. Para os alunos, ensina a ter empatia, paciência e saber esperar. Já vi, por exemplo, crianças deixarem de correr no intervalo para ficar em uma sala brincando com uma criança com autismo simplesmente porque o barulho incomodava esse amigo”, explicou.

Preocupação com quem ainda vai começar a estudar

Ana Flávia de Figueiredo é mãe de Álvaro, de 3 anos, que tem síndrome de down. Alvinho, como é carinhosamente chamado, ainda não começou a estudar, mas a família já se preocupa com a possível criação de escolas separadas.

Ana Flávia de Figueiredo é mãe de Álvaro, de 3 anos, que tem síndrome de down; ele ainda não começou a estudar, mas a família já se preocupa com a possível criação de escolas separadas — Foto: Ana Flávia de Figueiredo/Arquivo pessoal

Para Ana Flávia, o filho não conviver com outras crianças sem deficiência pode comprometer o desenvolvimento dele em diversos níveis.

“Nós tememos que essa segregação retroceda a ocupação das pessoas com deficiência na sociedade! Elas precisam ser vistas, respeitadas, compreendidas e recebam meios de conquistar seus lugares socialmente como cidadãos. E o primeiro passo para isso é estarem no ambiente escolar”, disse.

Segundo ela, pais e mães de crianças com deficiência já encontram dificuldades para matriculá-los em escolas mistas. Caso a proposta de escolas especiais se concretize, isso tende a piorar.

“Muitas negam mesmo, apelando para o desconhecimento das famílias, outras dão justificativas , sempre disfarçadas de preocupação. O que esperar a partir de agora já que, além da criação de escolas especiais (que sim, podem ser interessantes para casos específicos), deixa claro que essa conversa entre escola-pais, que antes era uma forma educada e velada de barrar essas crianças, passa a ser legal?”, desabafou.

Decreto 10.502/2020

O decreto 10.502 de 30 de setembro de 2020 institui a Política Nacional de Educação Especial. O decreto foi suspenso em 1º de dezembro pelo ministro Dias Toffoli, relator da ação. A suspensão foi mantida pelo plenário, que agora deve julgar o mérito do caso. Nesta segunda e terça-feira (23 e 24), o Supremo discutiu novamente o documento em audiência pública com a presença de representantes de entidades e coletivos de defesa de grupos com deficiências e necessidades especiais diversas.

Ministro Dias Toffoli defendeu, em audiência pública no STF, que a convivência entre pessoas com e sem deficiência traz benefícios para todos — Foto: Nelson Jr./SCO/STF

No encerramento do encontro, Toffoli conclamou os poderes públicos, as funções essenciais à Justiça e a sociedade civil a atuarem em favor da concretização dos mandamentos constitucionais da inclusão, da diversidade e da dignidade humana. Ele salientou que é preciso maior priorização, planejamento e investimento para a remoção dessas barreiras.

Segundo ele, a convivência entre pessoas com e sem deficiência traz benefícios para todos, com o fortalecimento do tecido social, a promoção do progresso e o aprimoramento da democracia. “É nas singularidades que residem as maiores potencialidades humanas”, ressaltou.

O ministro destacou que as pessoas são diversas em suas características motoras e cognitivas, bem como em termos de etnia, gênero e orientação sexual. "A democracia, em sua forma plena, não apenas acolhe a diversidade; a diversidade é a própria essência da democracia", afirmou.

Influenciadores voltados à causa das pessoas com deficiência, como Poliana Martins, do perfil Meu Bebê e o Autismo, Instituto Lagarta Vira Pupa, entre outros, têm se manifestado contra o decreto.

Fala do ministro da Educação

No dia 9 de agosto, durante participação no programa ‘Sem Censura’ da TV Brasil, o ministro da Educação Milton Ribeiro disse que crianças com deficiência nas escolas regulares “atrapalham” o desenvolvimento dos outros alunos.

Milton Ribeiro diz que há crianças com deficiência com quem 'é impossível a convivência'

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Na semana passada, o ministro afirmou também que o grau de deficiência de parte dos alunos especiais torna "impossível a convivência". A declaração foi dada durante uma visita ao Recife.

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