Márcia Acioli

Assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos

Opinião

‘Pintou um clima’: O governo Bolsonaro não se importa com a dignidade das crianças

Quando o assunto é o enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes,  a situação orçamentária é alarmante

Bolsonaro ensina a criança gesto da arma (Foto: Reprodução)
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Outubro é mês das crianças e, em 2022, mês da eleição mais tensa do Brasil, momento de disputa de modelo civilizatório. O país escolhe entre manter ou tirar um governo genocida enfurecido, negligente com a população e envolvido com inúmeros escândalos de violência e corrupção. Os ânimos se acirram e mal se escutam as vozes divergentes, no entanto, há sinais nas atitudes e nos discursos que merecem ser analisados, especialmente os que envolvem crianças e adolescentes, público que nos marcos legais brasileiros são prioridade absoluta, sujeitos de direitos sendo credores da proteção integral.

Não é de hoje que se faz uso político da figura da criança vista, em regra, como imagem comovente que denota afeto. Nesse contexto é fundamental que examinemos os conteúdos expressos nos gestos e textos políticos e conferir se, de fato, esse uso evidencia intenções de cuidado, de zelo e de defesa de direitos. Outro fator a se considerar é que, se por um lado fazem uso da imagem da criança, por outro abandona-se a adolescência tanto nos discursos como nas políticas públicas.

Vamos aos fatos. Tirar a máscara de uma criança em plena pandemia, movimento repetido pelo Bolsonaro inúmeras vezes, colocar arminha nas mãos das crianças (mesmo que somente em gestos), atenta contra a saúde e o desenvolvimento emocional. A famosa arminha legitima o mundo da violência como se matar fosse uma possibilidade cotidiana. O episódio foi duramente contestado pela Sociedade Brasileira de Pediatria. “Não se trata de uma discussão ideológica ou sobre a liberdade da posse, ou não, de arma pelos adultos. O que está em jogo é a vida e a integridade física e emocional de milhares de crianças e adolescentes. Por isso, os pediatras conclamam as autoridades para uma profunda reflexão sobre os efeitos destas ações de mídia e de marketing, que devem se basear na legislação e na ética, e nunca serem maiores que o compromisso com a dignidade da população brasileira”.

Esse mesmo candidato à reeleição à presidência em 2022, disse que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – primeiro instrumento jurídico que promove à criança o status de cidadã e que preconiza a responsabilidade de toda a sociedade para garantir a proteção integral – deveria ser ‘rasgado e jogado na latrina’. Ao dizer isso, revela que, para ele, a infância é uma fase desprezível, que não merece ser protegida. A sua fala contraria toda a legislação brasileira da Constituição Federal de 1988 ao ECA, mas é coerente com o seu desempenho no governo.

Por exemplo, os recursos destinados à assistência de crianças e adolescentes durante os anos do governo Bolsonaro caíram drasticamente, segundo o levantamento do Inesc. A verba foi 33% menor em 2021 em comparação com o que era investido em 2012.

Quando o assunto é o enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes,  a situação orçamentária é ainda mais alarmante. Em 2016, o Plano Orçamentário (PO) específico para este tema teve uma previsão de gasto de R$ 1,6 milhões, no entanto, nada foi feito, só foram executadas despesas de anos anteriores (chamadas de restos a pagar). A partir de 2017, este PO deixou de receber previsão de recurso até que, em 2019, primeiro ano da atual gestão, ele desapareceu. Ainda que este item tenha sido incorporado e, assim, diluído, em outros planos orçamentários, o fato é que o atual governo abriu mão de uma política pública voltada ao enfrentamento desta violência específica, que precisa de formas peculiares para preveni-la.

Mentiras e impropérios

Sem compromisso algum com a verdade Bolsonaro profere dados para que seu discurso seja incorporado pela população de forma que se entenda como fato suas mentiras. O presidente fala como se tivesse propriedade para emitir análises fundamentadas sobre assuntos que ele não domina, nem busca conhecer e cujos especialistas ele despreza. Dois breves exemplos: um sobre óbitos de crianças outro sobre vacinas.

“Você tem conhecimento de uma criança de 5 a 11 anos que tenha morrido de covid?”, Bolsonaro em uma ‘live’ de 6 de janeiro de 2022.

“Falei que tinha que cuidar do pessoal que tem doença aí, ‘os comorbidades’, os mais idosos, o resto, vai trabalhar, cara! A molecada não sofre com o vírus, porra…tanto é que você viu um moleque morrer de vírus por aí… Alguém conhece algum filho de alguém que morreu de vírus? Não tem!” 14 de outubro de 2022 (entrevista em um podcast).

Sobre as vacinas para crianças, mesmo quando o seu governo anuncia o plano de imunização, Bolsonaro critica a estratégia de proteção para esse público. “E você vai vacinar seu filho contra algo que o jovem por si só uma vez pegando o vírus a possibilidade de ele morrer é quase zero?

Contraposições

Segundo informe da Fiocruz de 28 de junho de 2022 “Desde o início da pandemia, a Covid-19 matou duas crianças menores de 5 anos por dia no Brasil. Ao todo, 599 crianças nessa faixa etária faleceram pela Covid-19 em 2020. Em 2021, quando a letalidade da doença aumentou em toda a população, o número de vítimas infantis saltou para 840. Ao todo, 1.439 crianças de até 5 anos morreram por Covid-19 nos dois primeiros anos da pandemia no Brasil. A Região Nordeste concentra quase metade desses óbitos” – dados coletados pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), os quais passaram por revisão do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais e municipais de Saúde.

A Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) divulgou no dia 7 de janeiro de 2022, uma nota de repúdio às declarações do Bolsonaro contra a vacinação de crianças de 5 a 11 anos contra a Covid-19. “Ao deturpar informações apresentadas por renomados cientistas na audiência pública, menosprezar as sérias complicações da doença na população infantil — ignorando centenas de óbitos — e criar artifícios para adiar o início da vacinação, o presidente cria um desnecessário clima de medo, que pode motivar inúmeros pais ou responsáveis a não levarem suas crianças às salas de vacinação. Em outras palavras, o discurso o discurso pode causar hospitalizações, mortes e sofrimento evitáveis”.

O presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o dr. Renato Kfouri, considera a “infeliz” afirmação do presidente Bolsonaro sobre a obrigatoriedade da vacinação. “O problema dessa declaração é que ela reforça a ideia de que a vacina não é importante e contribui, de forma mais ampla, para a descredibilização do calendário de imunização do SUS, que é um dos melhores do mundo. Deveríamos ter orgulho do número de vacinas que oferecemos gratuitamente levando em conta nossa população e extensão territorial. Foi uma fala bastante infeliz que não reflete os investimentos que o próprio governo tem feito nessa área”.

Interesse em menininhas

“Olhei umas menininhas, 3, 4 bonitas – 14, 15 anos. Arrumadinhas no sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima. Voltei: posso entrar na sua casa? Entrei…”

Uma pessoa que propala aos berros a defesa da família e da moralidade não tem escrúpulos para dizer de seu interesse por menininhas. A isso se nomeia pedofilia. É importante que seus seguidores saibam em quem votam para fazer uma escolha consciente. E é igualmente imperativo que se saiba da conivência com as ideias e posturas imorais do atual presidente que tem como bandeira ‘valores da família brasileira’. Para o Bolsonaro, meninas de periferia ao andarem arrumadas estão disponíveis para a exploração sexual; pensamento profundamente preconceituoso com as populações periféricas.

Damares só pensa em sexo

Damares Alves, uma das mais importantes aliadas do Bolsonaro, ex-ministra da Mulher, família e dos Direitos Humanos é outra que se ancora em textos sensacionalistas que tem pouca liga (ou nenhuma) com a verdade. Grande parte das aparições públicas de Damares Alves fala sobre sexo, sexualidade, gênero e moralidade cristã, geralmente criando clima sensacionalista, pouco sério e sem provas.

A distinta senhora já falou de hotel?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> fazenda para sexo com animais e, ainda, que tal conteúdo é tratado nas escolas por professores.

Declarou em púlpito sobre práticas defendidas por ditos especialistas holandeses de masturbação de bebês – fato que causou indignação por parte dos holandeses.

Mas nada chega perto da gravidade que foi a?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> pregação em que faz uma descrição detalhada e pavorosa de tortura infantil, usando sua autoridade como pastora para a disseminação de notícias que não se comprovam verdadeiras. O Ministério Público Federal do Pará afirma que nenhuma denúncia nos últimos 30 anos é semelhante às citadas por ela.

Usando a ‘sua’ igreja como escudo “… eu tenho o manto constitucional (…) tou falando com a MINHA igreja, tem coisas que não posso falar lá fora (..)”, Damares Alves diz que aquele espaço não é submetido às leis brasileiras.

Com tanta barbaridade descrita, a ex-ministra não mostra provas, não revela planos de enfrentamento à violência sexual, não divulga estratégias, proíbe que se trate de gênero na escola com projetos pedagógicos consistentes, e pior: expõe crianças ao seu discurso evidentemente mentiroso, enfurecido e violento. No culto – político, diga-se de passagem – ela afirma ter imagens, no entanto cai em contradição quando diz que soube em conversas nas ruas. Evidencia-se mentira com propósitos eleitorais.

Contradições

As campanhas eleitorais são momentos privilegiados para se tratar de planos de governo para o enfrentamento aos mais sérios problemas do país. Hoje a fome, o trabalho infantil, as violências, a educação, a saúde são temas fundamentais para se assegurar o pleno desenvolvimento de todas as crianças e adolescentes. Planos que devem mostrar estratégias, orçamento, apontar responsáveis e ouvir a população.

O abandono evidente das pautas de direitos nos diz o que é muito fácil de se concluir: o governo Bolsonaro não se importa com a dignidade das crianças e, quanto aos adolescentes, estes que são vistos no orçamento público apenas nas ações da socioeducação, são puramente criminalizados.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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