Descrição de chapéu
Sereno Sofia Gonçalves Repolês

'Pessoas que menstruam' é termo vital para que 'todes' acessem políticas públicas

Ninguém quer ser reduzido a uma categoria biológica, mas pessoas trans ainda lutam para serem reconhecidas pelo Estado

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sereno Sofia Gonçalves Repolês

Antropólogo e docente, é doutorando em Saúde Coletiva pela Escola Paulista de Medicina (Unifesp). Pesquisa transmasculinidades e envelhecimento

Antes de qualquer coisa, é preciso ressaltar que o termo "pessoas que menstruam" não pretende se colocar como categoria identitária universal. Essa expressão foi criada para ser empregada sobretudo no contexto de serviços e peças de comunicação em saúde; um artifício textual capaz de englobar, além da realidade material das mulheres cis, a experiência de pessoas transmasculinas, não binárias e intersexo.

Ou seja, trata-se de um recurso descritivo capaz de agregar diferentes identidades que compartilham determinadas experiências fisiológicas e, portanto, precisam ser contemplados por políticas públicas similares.

0
Bandeira transexual em Parada do Orgulho LGBTQIA+ em São Paulo - Diego Padgurschi/Folhapress

Onde está a escuta para as vozes trans, que encontraram no termo "pessoas que menstruam" a possibilidade de serem incluídas nas narrativas e nas práticas da atenção à saúde? O deslocamento do termo do contexto e do propósito para o qual foi criado pode criar certa confusão: em momento algum se pretendeu reduzir, seja mulheres cis, seja quaisquer outros sujeitos políticos, a suas características biológicas.

Pelo contrário. Trata-se justamente de não pressupor que a menstruação, a gestação, o puerpério e o aborto sejam elementos definidores e/ou exclusivos de mulheres cisgênero.

Quando nos referimos a "mulheres cisgênero", buscamos justamente chamar atenção para o fato de que a categoria "mulheres" não pode ser reduzida a determinadas características biológicas. A redução de questões de gênero à biologia é o principal argumento utilizado para justificar violências perpetradas contra a população trans.

O conceito de cisgeneridade foi criado por movimentos sociais, ativistas e teóricos/as trans para marcar o "locus social" de sujeitos que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer, cuja experiência é diferente da vivenciada por pessoas intersexo, não binárias, trans e travestis, que precisam cruzar as violentas fronteiras da normatividade para viver em coerência consigo mesmas.

A categoria "mulher" pode ser insuficiente para se referir à vivência da multiplicidade de pessoas que demandam serviços até muito recentemente oferecidos apenas para esse grupo. As políticas públicas precisam ser capazes de reconhecer as pessoas em suas especificidades, sejam elas cisgênero, transgênero, indígenas, negras, brancas, refugiadas, idosas, jovens, portadoras de deficiência ou de determinada condição de saúde, mães, ricas, pobres, etc.

De fato, quando se pretende direcionar ações políticas para diferentes grupos sociais, mencionar uma a uma cada categoria identitária pode ser um recurso mais inclusivo.

Uma campanha de prevenção ao câncer de mama pode ser direcionada a todos aqueles que estão sujeitos a ser acometidos pela doença: mulheres cis, mulheres trans, travestis, homens trans, pessoas intersexo e não binárias, e assim por diante.

Não podemos perder de vista que qualquer categoria identitária é uma forma de generalização insuficiente para abarcar a multiplicidade das experiências singulares. É por isso que é preciso pensar como cada categoria se articula de maneira interseccional com as outras e pensar o que cada uma delas demanda em termos de saúde. Além de reconhecer o que cada grupo possui de diferente, é preciso identificar o que têm em comum.

É nessa tentativa de reconhecer e mapear necessidades similares e pontuais que surgem termos como "pessoas que têm útero" e "pessoas que têm próstata". O principal objetivo desses instrumentos textuais é reduzir violências simbólicas e situações traumáticas, que acabam se tornando barreiras a afastar as populações trans e travestis do acesso a serviços médico-hospitalares.

Com muita frequência, pessoas trans deixam de buscar atendimento adequado para condições de saúde que, sem acompanhamento, podem vir a se agravar.

Devemos, certamente, preservar o direito ao dissenso entre pesquisadores, comunicadores e intelectuais. Mas um debate como esse não pode vir desacompanhado da responsabilidade social sobre aquilo que enunciamos.

É preciso que as críticas sejam elaboradas com cuidado para não prejudicar estratégias traçadas por grupos minoritários que dependem de políticas ainda incipientes e frágeis para que lhes seja garantido um acesso mínimo a seus direitos básicos.

Especialmente em tempos em que o pânico moral é estimulado por setores conservadores que insistem em retratar pessoas que não se adequam a padrões de gênero como inimigos da nação. Não se pode esquecer que estamos falando do país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo —e que a parcela negra dessa população é o principal alvo dessa violência.

Artigo escrito em resposta a coluna de Djamila Ribeiro publicada em 2 de dezembro de 2022

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.