Por Liliane Cutrim


Quebradeiras de coco babaçu no Maranhão. — Foto: Divulgação/Governo do Maranhão

A redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2022 trouxe como tema "Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil" e chamou a atenção de lideranças, pesquisadores e defensores dos povos de comunidades tradicionais pelo país.

No Maranhão, em entrevista ao g1, o pesquisador, antropólogo e liderança da comunidade de Itamatatiua, em Alcântara, Davi Júnior, comentou sobre a escolha desse tema para edição deste ano. O pesquisador considerou a escolha positiva, pois dá visibilidade aos povos que ficam na invisibilidade e, também, é uma forma de abrir espaço para discutir a situação dessas comunidades que sofrem com a falta de garantias de seus direitos constitucionais.

Comunidades que são exemplo de preservação ambiental, pois trabalham com o uso racional dos recursos naturais, pensando nas gerações futuras.

“Eu penso que é importante (o tema cair no Enem), porque traz à discussão a luta de grupos sociais que estão aí na invisibilidade, diante de uma parte da sociedade brasileira que finge que é uma luta que não existe. A gente, infelizmente, não consegue que essa nossa luta tenha uma condição mais hegemônica, principalmente em termo midiático. É importante ressaltar isso, porque a gente vive no contexto de muita pressão, principalmente com os conflitos envolvendo as disputas territoriais”, destaca o antropólogo.

Davi Júnior analisa, ainda, que o Estado brasileiro, apesar de ter um conjunto de leis que garantem direitos territoriais, principalmente para povos de comunidades tradicionais, não tem a preocupação em cumprir as obrigações constitucionais, principalmente de titular os territórios. O pesquisador avalia que, a única possibilidade de planejar o futuro desses povos é por meio da seguridade territorial.

“Enquanto a gente não tiver a segurança do território, da titulação, a gente vive, infelizmente, sem direito de planejar nosso futuro. Para os povos de comunidades tradicionais é uma importante parte da história do Brasil, da construção da sociedade brasileira, tanto da preservação, como dos saberes, da epistemologia territorial, e, por isso, eu penso que estar no Enem abre uma possibilidade de colocar em discussão com a sociedade brasileira”.

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O antropólogo também afirma que viu como uma boa surpresa o tema cair na redação do Enem e que isso representa um ganho, deixando o assunto em evidência.

“O Enem tem essa característica de colocar para debate temas importantes. E os povos de comunidades tradicionais é um tema importante. Tem sido feito um tema importante, graças ao processo de luta que as lideranças dos povos de comunidade em geral têm enfrentado. A luta pelo direito de existência, a luta pelo direito a permanência, a luta de escolher permanecer em seu território, de reproduzir sua cultura, economia”, destaca.

Ainda segundo Davi Júnior, abordar essa temática também é importante para chamar a atenção nesse momento tão delicado que o país está passando, de desvalorização das comunidades tradicionais e de graves ameaças a esses povos.

“Nos últimos anos a gente tem que conviver, infelizmente, com o assassinato de uma série de lideranças de povos de comunidades tradicionais. Como o que aconteceu em Jacarezinho, perto de Caxias, onde a liderança foi assassinada, ou o caso de Anajatuba. O caso dos indígenas, dos quilombolas, o caso das ameaças com a quebradeira de coco. Então a gente vive em um processo de pressão e opressão muito severo. E com o Enem, abre a possibilidade de discutir, também, esses tipos de questões”, avaliou Davi Júnior.

As ameaças citadas pelo antropólogo são bem conhecidas de Valda, liderança da comunidade agrícola Estiva do Cangati, em Belágua. Em entrevista ao g1, ela destacou a luta de sua comunidade para sobreviver aos ataques dos que se dizem donos das terras onde sua comunidade vive há mais de cem anos. Valda afirma que tem medo até de falar sobre o assunto, pois as ameaças são constantes e já duram anos.

“O que vive acontecendo aqui na nossa comunidade, acontece há muito tempo. Tem muito tempo que a gente vive nessa situação de conflito de terra, desde o primeiro que se dizia dono da comunidade. O problema veio piorar depois que ele repassou para um gaúcho, aí a situação piorou na nossa comunidade. A gente vivia à base da ameaça, a gente não dormia, não comia. Teve tentativa de homicídio na nossa comunidade, teve queima de casas. Um menino ainda ficou deficiente dos tiros que pegou nas pernas. Foi mesmo uma tragédia aqui, nós sofremos muitas ameaças mesmo, ameaças de verdade”, relata a liderança da comunidade.

Segundo Valda, além das ameaças de morte por causas das terras, os supostos donos do lugar também já chegaram com máquinas para ameaçar destruir as plantações dos moradores, que vivem da lavoura.

“Nós somos lavradores, é de roça que nós vivemos. Aí a gente vive com medo, porque a gente ouve tiros demais. Tem gente que tá doente, tem gente que está com depressão, tem que gente que tá com medo de sair”, destaca Valda.

A comunidade recebeu uma liminar da Justiça garantindo aos moradores do local a posse das terras, mas essa liminar foi derrubada pelos supostos donos do território. Enquanto isso, a comunidade que vive na região não consegue ter a liberdade de construir suas casas de forma digna, pois vive com medo.

Ismael também é liderança de uma comunidade de agricultores familiares, o território campestre, que há quase 30 anos luta pela regularização de seu direito à terra no município de Timbiras, no Leste do Maranhão.

Os povos que vivem nessa região já enfrentaram expulsão de suas terras por grileiros, latifundiários e fazendeiros, mas resistem às ameaças, assim como tantos outros povos de territórios de comunidades tradicionais no Maranhão.

Para Ismael, saber que o Enem 2022 abordou os desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil, foi algo importante, que contribui com a valorização das comunidades.

“Pra gente que convive em sociedade sempre será bom quando é discutido, principalmente no Enem. E esse tema não deve ser discutido só no Enem, mas em vários lugares, nas universidades, em outros pontos de ensino, que possam estar educando os nossos filhos, nosso futuro que vem pela frente”, destacou.

Ismael também analisou a situação do governo federal, na atualidade. Segundo ele, os últimos anos foram marcados por um governo ‘desarticulador’.

“Nesses últimos seis anos foi muito ruim para o povo, muito fraco, um governo muito desarticulador. Um governo que só tratou de diminuir as comunidades tradicionais, os povos organizados, a sociedade civil. Um governo que pouco fez pelo bem da sociedade”, afirmou.

O tema da redação foi elogiado nas redes sociais, em que internautas lembraram a política do presidente Jair Bolsonaro (PL) para a área. Em tempo de COP 27 e transição de governo, nas redes sociais, pessoas de diferentes perfis apontaram que o momento atual é oportuno para debater o legado negativo do governo de Jair Bolsonaro (PL) no assunto. – veja a repercussão.

Prova de redação do Enem 2022 usou textos de reportagens do g1

Para desenvolver um texto dissertativo-argumentativo, os candidatos do Enem tiveram material de apoio para consulta e leitura sobre o tema.

Dos quatro itens que constavam como referência para os candidatos na prova, dois foram extraídos do g1. O primeiro era um trecho da reportagem "Gente do campo: descubra quais são os 28 povos e comunidades tradicionais do Brasil", da repórter Vivian Souza, e o segundo era uma adaptação de infográfico de outra reportagem sobre o mesmo assunto. Veja abaixo:

Em cada grupo, veja os três estados com a maior concentração de famílias tradicionais. — Foto: Rodrigo Sanches/G1

A reportagem da qual o gráfico foi extraído tem o título: "650 mil famílias se declaram 'povos tradicionais' no Brasil; conheça os kalungas, do maior quilombo do país". O texto teve autoria da repórter Paula Paiva Paulo, com captação de imagens de Fábio Tito e gráficos elaborados por Rodrigo Sanches.

O texto de Paula Paiva foi um dos finalistas do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos em 2020. No g1, ele integrou uma série batizada de "Desafio Natureza", que foi publicada ao longo de um ano e teve 12 capítulos, cada um deles dedicado a um dos problemas ambientais enfrentados pelo Brasil dentro das prioridades de ação definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU). A série de reportagens foi idealizada e coordenada pelo jornalista Ardilhes Moreira, editor da área de Meio Ambiente no g1.

Já a reportagem de Vivian Souza integra uma série de textos batizada de "Gente do Campo", que trata da realidade e da trajetória de pessoas que "fazem o agro do Brasil". O projeto tem a coordenação da jornalista Luciana Oliveira, responsável pela cobertura de Agronegócios no g1.

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O que são povos e comunidades tradicionais?

Por definição, "povo ou comunidade tradicional" são núcleos que têm nos territórios em que vivem e nos recursos naturais que utilizam a condição de sua existência e de sua identificação como um grupo culturalmente diferenciado.

Entre eles estão indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, extrativistas, ribeirinhos, ciganos e pertencentes a comunidades de terreiro, entre outros.

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