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Brasil

Pesquisa mostra que ações na primeira infância impactam positivamente a aprendizagem

Estudo usou os estudantes de Sobral, que possuem avaliações superiores à de outras cidades, para mostrar como medidas que vão desde a área da saúde até o clima escolar auxiliam no desenvolvimento dos alunos
Escola em Sobral possui resultados acima da média nacional no Ideb Foto: Antonio Gois
Escola em Sobral possui resultados acima da média nacional no Ideb Foto: Antonio Gois

RIO — Desde que começou a se destacar nas avaliações de aprendizagem do MEC, o município de Sobral (CE) passou a atrair a atenção de pesquisadores e gestores interessados em conhecer o que leva uma cidade no interior do Ceará a ter 97% de suas crianças no 5º ano com aprendizado adequado em Português e Matemática.

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A demanda foi tanta que a secretaria de educação precisou organizar seminários, uma vez por mês, para atender aos pedidos de visita. Antes da pandemia, esses encontros mobilizavam entre 150 e 300 pessoas de fora. Mas já houve períodos em que o número oscilou entre 600 e 800.

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Vários trabalhos já foram publicados sobre Sobral, destacando fatores como formação de professores, foco na alfabetização, uso pedagógico de avaliações externas, entre outros. Um estudo inédito coordenado pelos  pesquisadores Mariane Koslinski e Tiago Bartholo, da UFRJ, com apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, joga luz sobre um novo elemento que pode também ajudar a explicar o resultado: políticas intersetoriais na primeira infância, que não se resumem ao que acontece em sala de aula.

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Koslinski e Bartholo fazem parte de um grupo de pesquisas na UFRJ – o Laboratório de Pesquisa em Oportunidades Educacionais – que têm realizado pesquisas, em várias escolas e algumas redes municipais no Brasil, sobre o aprendizado de crianças dos 4 aos 7 anos de idade, por meio de um instrumento de avaliação desenvolvido pela Universidade Durham, na Inglaterra.

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Ao tabularem os resultados das crianças sobralenses, os pesquisadores identificaram que, já aos quatro anos de idade, no início do ano letivo pré-escolar, 74% delas já eram capazes de conhecer a maioria das letras, outras 12% de ler palavras simples, e 3% conseguiam ler até frases simples.

— Não estamos dizendo que o objetivo da educação infantil seja exclusivamente desenvolver essas competências e nem defendendo que isso seja o mais importante. Mas o que percebemos em Sobral é que, já no início da pré-escola, as crianças ingressam nesse primeiro ano de escolaridade obrigatória com aprendizados que nossa Base Nacional Comum Curricular indica que sejam esperados, de forma mais explícita e estruturada, apenas para o início do fundamental  — afirma Koslinski.

Ao acompanhar essas crianças até o final da pré-escola, o estudo da UFRJ mostrou que todos os alunos em Sobral se desenvolveram bastante. Identificou ainda políticas para a primeira infância que são capazes de diminuir desigualdades educacionais. No entanto, o fato de o desenvolvimento cognitivo  já ser positivo desde o ponto de partida indica, na opinião dos autores da pesquisa, que há algo que ocorre antes do ingresso na pré-escola que contribui para esse resultado.

— Nossa hipótese, baseada na literatura acadêmica internacional e no que vimos em Sobral, é que há ações intersetoriais de apoio às famílias desde o pré-natal que estão funcionando bem, e isso sabemos que também gera impacto no desenvolvimento cognitivo — diz Bartholo.

Busca ativa

Para o secretário municipal de educação de Sobral, Herbert Lima, a hipótese dos pesquisadores é correta:

— A intersetorialidade das ações voltadas para a primeira infância em Sobral nem sempre é destacada, mas essa é sem dúvida uma característica marcante de nossa política. Assim que nasce um bebê, o sistema de saúde já informa o de educação. Há um atendimento prioritário de famílias em maior situação de risco, para garantir que, desde os primeiros meses de vida, o bebê tenha a alimentação adequada e seja acompanhado por agentes da saúde.

Esse monitoramento, que se inicia desde o momento da gravidez, permite que o sistema educacional se planeje melhor para atender a demanda por vagas em creches, cuja matrícula, voltada para crianças de zero a três anos de idade, não é obrigatória. A meta do Plano Nacional de Educação é que, até 2024, o Brasil chegue ao percentual de 50% da população nessa faixa etária atendida.

Em 2019, de acordo com o IBGE, esse percentual era de 36% em todo o país. No município de Sobral, a prefeitura estima que este atendimento já esteja em 53% e que, no caso da pré-escola (4 e 5 anos), esteja universalizado.

Convencimento

Em geral, o maior problema das redes municipais no Brasil no caso do acesso à creche é não conseguir atender a demanda das famílias por vagas. O acompanhamento de crianças desde o nascimento em Sobral facilita que a rede se prepare para atender essa população.

— Há famílias que, por questões culturais, preferem não matricular os filhos em creche. Não podemos obrigar, mas, quando identificamos situações de risco em casos como esse, há um processo de convencimento. Quando essa criança finalmente é matriculada no sistema educacional, já temos informações relevantes sobre ela, que vão facilitar o atendimento — explica o secretário.

Um marco importante das políticas para essa faixa etária em Sobral é o Plano Municipal para a Primeira Infância, aprovado como lei na Câmara de Vereadores em 2015, que organizava uma série de ações em várias secretarias colocando como foco prioritário aquelas que poderiam beneficiar crianças de zero a seis anos.

José Clodoveu Arruda, prefeito na época em que a lei foi aprovada, conta que uma diretriz importante para organizar as ações de primeira infância no município foi a busca ativa por domicílios com crianças em situação de extrema pobreza. Isso permitiu que essas famílias tivessem prioridade no atendimento de ações das mais diversas secretarias.

— Se a prefeitura iria oferecer um curso de capacitação profissional, o fato de ter em casa uma criança em situação de vulnerabilidade dava ao pai ou a mãe prioridade na matrícula. Quando selecionávamos quem seria beneficiado com casas em conjuntos habitacionais, era atribuída uma pontuação maior para as famílias com filhos nessas condições. E assim organizamos as nossas ações para que as crianças fossem o centro das políticas públicas — afirma Arruda.

A identificação e acompanhamento das mães em situação de risco é um dos elementos mais importantes da política de primeira infância de Sobral. Um dos programas com essa finalidade é o “Mães Sociais”, que capacita mulheres de comunidades carentes na cidade que já tenham tido a experiência da maternidade para dar apoio por dois anos a outras — em geral mães pela primeira vez — que tenham pouco apoio de suas famílias para cuidar das crianças. As “mães sociais” orientam em cuidados básicos como dar banho, amamentar e fazer o acompanhamento das necessidades básicas do bebê.

Uma preocupação na época em que o Plano Municipal para a Primeira Infância foi lançado era também reduzir a mortalidade infantil. Sobral, assim como outros municípios no Ceará, estava conseguindo reduzir a taxa de mortes de crianças antes de completar um ano de idade, mas havia um grupo resiliente, com um número de mortes evitáveis ainda elevado.

Clodoveu Arruda conta que, ao fazerem um levantamento sobre as causas, foi identificado que crianças que nasceram pré-maturas e filhos de pais usuários de Crack estavam entre os grupos de maior risco.

Para combater o problema, foram criados programas específicos para essas populações. As crianças pré-maturas passaram a ser atendidas por assistentes sociais diariamente, inclusive aos domingos e feriados, que mediam sua altura, peso e tiravam a temperatura. No caso das mães dependentes químicas, é oferecida a elas a oportunidade de se mudar para um abrigo com o bebê, onde tanto o filho quanto a mãe recebem alimentação e atendimento de assistentes sociais.

Efeito da pré-escola

Ainda que sinalizem para ações extra-escolares que podem ajudar a explicar o bom desempenho dos alunos de Sobral, o estudo da UFRJ também identificou aspectos do atendimento na pré-escola que tiveram impacto positivo no desenvolvimento dos estudantes.

Uma das conclusões da pesquisa é que o desenvolvimento cognitivo está fortemente associado ao desenvolvimento motor e socioemocional das crianças durante a pré-escola e que a frequência escolar nessa faixa etária de 4 e 5 anos em Sobral tem impacto positivo na aptidão física e coordenação motora.

Outro achado interessante foi que as meninas apresentam desenvolvimento em linguagem mais elevado que os meninos no início da pré-escola, e esta vantagem se mantém ao longo dos dois anos desta etapa de ensino. Mas o mesmo não acontece em Matemática, onde elas também apresentam ponto de partida mais elevado, mas a vantagem se inverte ao longo da pré-escola.

Outras conclusões que os autores destacam são que o tamanho de turma está negativamente associado com o desenvolvimento cognitivo das crianças em Linguagem, o fato de o professor acreditar que é capaz de exercer impacto positivo no desenvolvimento da criança está positivamente associado com aprendizagem em matemática e o clima escolar — a qualidade da relação entre professores, alunos e direção — está positivamente associado à aprendizagem em Linguagem e Matemática.

O atual secretário de educação de Sobral, Herbert Lima, conta que os equívocos mais comuns de alguns visitantes que vão a Sobral mensalmente para entender as razões dos bons resultados em avaliações educacionais são querer simplificar a experiência do município, pinçando apenas um elemento da política pública, ou acreditar que seja possível replicar o modelo do município com ações de curto prazo. A atenção dada à primeira infância, sozinha, não explica todo o sucesso da cidade. Mas, certamente, é mais um elemento a ser considerado.