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Brasil educação

Pelo menos 5,7 milhões de estudantes ainda precisam pagar internet para ter aula na rede pública durante a pandemia

Cinco meses após a interrupção do ensino presencial, apenas cinco estados custeiam acesso aos alunos, mostra levantamento do GLOBO
Apenas cinco dos 17 estados que responderam à reportagem do GLOBO afirmaram que custeiam a internet dos alunos da rede pública. Foto: Reprodução
Apenas cinco dos 17 estados que responderam à reportagem do GLOBO afirmaram que custeiam a internet dos alunos da rede pública. Foto: Reprodução

BRASÍLIA — Com a suspensão das aulas presenciais devido à pandemia da Covid-19, grande parte das redes de ensino do país passaram a adotar atividades à distância. No entanto, a falta de financiamento de internet por parte do poder público, na prática, tem tornado a escola pública um serviço pelo qual muitos estudantes precisam pagar para ter acesso.

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Um levantamento feito pelo GLOBO mostra que, depois de cinco meses da interrupção das aulas, dos 17 estados que responderam a reportagem, apenas cinco financiam o acesso à internet para os alunos: Espírito Santo, Maranhão, Paraíba, Minas Gerais e São Paulo.

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Ou seja, embora os outros estados disponibilizem material on-line, não há o custeio do acesso para os estudantes, o que faz com que pelo menos 5,7 milhões de alunos tenham que arcar com os custos de internet para estudar na escola pública. O cáculo foi feito pela reportagem do GLOBO com base na resposta dos estados e no tamanho de suas redes de ensino.

Todos os estados foram procurados pelo GLOBO.

Sem internet para estudar Foto: Editoria de Arte
Sem internet para estudar Foto: Editoria de Arte

Estudante divide wi-fi com a vizinha, que é professora

Essa realidade é o que leva a situações como a de Roniel Conceição, 18, no terceiro ano do ensino médio. Ele mora em Benedito Bentes, um bairro periférico de Maceió (AL). Segundo ele, de 45 alunos de sua turma, no máximo 15 fazem as atividades on-line. No começo da pandemia, ele ia até a casa da sua avó usar o wi-fi para estudar, mas parou de ir para não a expôr a risco.

— Eu colocava créditos em um chip, mas não duravam uma semana. Então, lá pelo fim de maio, eu combinei com a minha vizinha, que é professora, de dividir o wi-fi dela, e estou pagando uma parte da conta. Para a gente, que é da periferia, é pesada uma conta de internet.

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Entre as unidades da federação consultadas, duas estão em processo de contratação de companhias de internet para oferecer o serviço: Rio Grande do Sul e o Distrito Federal. A Bahia informou que não adotou o ensino remoto, disponibilizando aos estudantes materiais impressos.

A estratégia de atividades em papel foi a alternativa adotada pela maioria dos estados que não financiam a internet dos estudantes, assim como as vídeoaulas transmitidas pela TV aberta. O estado de Goiás encontrou uma outra alternativa e, além de entregar material impresso na residência dos alunos, oferece conteúdo offline em seu aplicativo.

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Aluna do segundo ano do ensino médio na Escola Estadual Conde Pereira Carneiros, em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, Ana Victoria da Silva precisou estudar pelo material impresso até o mês passado, porque não tinha internet em casa.

A estudante Ana Victoria da Silva, que precisou estudar pelo material impresso até o mês passado, porque não tinha internet em casa. Foto: Arquivo pessoal
A estudante Ana Victoria da Silva, que precisou estudar pelo material impresso até o mês passado, porque não tinha internet em casa. Foto: Arquivo pessoal

No entanto, a defasagem em relação ao conteúdo passado para resto da turma em uma plataforma on-line fez com que sua mãe, que trabalha como faxineira em outra escola, contratasse um plano de dados para seu celular para viabilizar os estudos da filha. O telefone da mãe de Ana Victoria é o único dispositivo eletrônico da casa e precisa ser compartilhado com outro dois irmãos da estudante, que também estão com atividades remotas.

—  Se metade dos alunos têm acesso à internet e a outra metade não, há uma parte com chance de passar no vestibular e cursar uma faculdade, e outra metade, não. Tinham dito que nos dariam um chip com internet para acessar o aplicativo, porque o conteúdo on-line estava mais avançado que a apostila impressa, mas até agora nada. Assim como eu, outros alunos têm o sonho de cursar uma faculdade e ter um futuro. Pessoas de baixa renda como eu precisam ficar esperando o governo nos dar uma chance— diz a estudante, que costumava vestir o uniforme escolar para estudar em casa.

A estudante teve que se deslocar até a escola para receber a apostila de atividades, porque o serviço dos Correios não consegue fazer entregas em seu bairro. Como passou os meses estudando no material impresso, agora a aluna tenta correr atrás do prejuízo acessando a plataforma on-line com o celular da mãe. A família vive com a renda de um salário mínimo e teve que fazer cortes no orçamento para custear a rede móvel.

— A apostila que recebi foi referente ao primeiro bimestre, e as pessoas que estão fazendo a plataforma on-line já estão no terceiro bimestre, ou seja, quem ficou fazendo somente a apostila está muito atrasado— disse a estudante, afirmando que há algumas semanas foi à escola para saber sobre a nova apostila, mas não obteve nenhuma resposta.

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Em resposta a esse caso, a Secretaria de Educação do Rio afirma que “todas as escolas estaduais da Seeduc receberam arquivo com material didático de estudos e recursos para realizarem a impressão deste material para disponibilizar para os alunos”. O governo estadual chegou a abrir uma licitação para comprar 750 mil chips para alunos, mas alega que, devido a um aumento nos preços imposto pelo fornecedor, a contratação não foi adiante.

Nesta semana, em resposta a um requerimento da Comissão Externa de Acompanhamento do MEC na Câmara, a pasta afirmou que "não dispõe de informações acerca do número de alunos da rede pública de ensino do país que estão tendo tele-aulas e aulas on-line até o momento".

No Distrito Federal, em que o financiamento de internet ainda está sendo implementado, estudantes relatam dificuldades, e não só com o acesso. O aplicativo escolhido pela maioria de secretarias de Educação, o Google Classroom, é pesado e não carrega bem em celulares Android mais baratos, segundo os alunos.

— A única maneira de abrir era pelo computador, então tinha que dividir computador com a minha mãe em casa. Acabei fazendo os deveres só duas vezes por semana — conta Pedro Vieira Sales, 17, estudante da rede pública no Paranoá, região administrativa de Brasília.

'Crise dentro da crise'

Coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda explica que problemas históricos da educação brasileira têm sido agravados com a crise. Segundo ela, é importante ainda valorizar os profissionais da educação nesse momento para não prejudicar ainda mais os estudantes.

— Estamos vivendo uma crise dentro da crise. O Ministério da Educação, como representante da União, precisa colaborar técnica e financeiramente com as políticas educacionais. E ele não tem feito nem um, nem outro — critica. — Nesse contexto está inserido o debate do novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) , que precisa garantir não só maiores aportes da União, como também que o recurso chegue nas escolas e na garantia dessa estrutura de qualidade. Para isso, é preciso que o Senado Federal siga os avanços conquistados na Câmara dos Deputados.

O GLOBO entrou em contato com o MEC para saber o que a pasta tem feito para auxiliar os estados a fornecer internet aos estudantes mas até a conclusão desta reportagem não obteve resposta.