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Paulo Freire era um defensor da tecnologia nas escolas, diz Mario Sergio Cortella

Filósofo que conviveu 18 anos com o educador lembra do chefe amoroso e exigente que teve na secretaria municipal de São Paulo
Mário Sérgio Cortella coviveu por 18 anos com Paulo Freire Foto: Reprodução
Mário Sérgio Cortella coviveu por 18 anos com Paulo Freire Foto: Reprodução

RIO - Filósofo que conviveu por 18 anos com Paulo Freire, Mario Sergio Cortella conta em entrevista ao GLOBO que o maior pensador da educação na história brasileira defendia o uso de tecnologia em sala de aula ainda na década de 1990 e que, se vivo fosse, se envergonharia do estado da educação de jovens e adultos no país. No último domingo, o Patrono da educação brasileira completaria cem anos.

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— Estamos sem projeto. Paulo Freire, sem dúvida, pensaria em elaborar um projeto que não tivesse apenas o P de projeto, mas também o P de pessoas (quem faria?), o P de prazo (como faríamos e em quanto tempo?) e o P de provimento — afirma.

Cortella, que leu os textos ainda clandestinos de Freire na década de 1970 durante a ditadura militar, conheceu Paulo Freire quando o educador voltou do exílio em 1980 e nove anos depois foi trabalhar na equipe dele, quando Freire assumiu a Secretaria municipal de Educação na gestão de Luiza Erundina. Em 1991, o filósofo era chefe de gabinete quando foi escolhido para sucedê-lo.

— Digo que jamais substituí o Paulo Freire, substituí o cargo (risos) — brinca Cortella.

Ao GLOBO, o filósofo — última pessoa a ter a Tese de doutorado orientada por Paulo Freire — lembra do educador como um chefe amoroso, que só escrevia à mão em folhas sem pauta, de riso contido, mas exigente, explica que suas ideias não defendiam uma educação ideologizada muito menos partidarizada e conta que ele jamais se oporia a ter suas ideias questionadas.

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— Paulo Freire fez chegar à ponta a noção de que o diálogo é importante. Não anula a autoridade docente, mas a exclui o autoritarismo docente.

O que o pensamento de Paulo Freire mais influenciou a educação brasileira na ponta?

A força maior do pensamento de Freire, não só no Brasil, mas também fora, é a noção de diálogo como sendo um movimento de aprendizagem e ensino recíproco. Diálogo não no sentido socrático em que o mestre já sabe e ao dialogar ele faz com que o discípulo seja iluminado. No diálogo freireano há uma suposição de que, embora a docência tenha autoridade, ela não tem todo o conhecimento. E quem é discente também é capaz de ensinar. Isso é algo que aparece na obra de Guimarães Rosa: “Mestre não é aquele que sempre ensina”.

Paulo Freire durante entrevista em 1988 Foto: Amâncio Chiodi / Divulgação Itaú Cultural
Paulo Freire durante entrevista em 1988 Foto: Amâncio Chiodi / Divulgação Itaú Cultural

Em “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire escreveu um subtítulo — que, a propósito, é muito usado para fraturar a realidade do seu pensamento. Ele escreveu: “Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho. As pessoas se educam mediadas pelo mundo”. Se fizer só o comecinho da frase, “Ninguém educa ninguém”, vai dar a sensação que não existe a educação. Não foi o que ele fez.

Paulo Freire fez chegar à ponta a noção de que o diálogo é importante. Não anula a autoridade docente, mas a exclui o autoritarismo docente. E que o universo vivencial que o aluno tem também importa como aproximação para o ato pedagógico na relação ensino aprendizagem. É levar em conta aquilo que a pessoa já sabe para chegar até onde não se sabe.

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Isso é uma filosofia da educação de Paulo Freire que é difícil deixar de lado. Para isso, ele utilizou concepções de John Dewey, trabalhou algumas ideias de Jean Piaget, trouxe luz do existencialismo cristão europeu de Gabriel Marcel, algumas das inovações de Karl Marx ligadas à dialética — não à política, no sentido partidário. A grande marca dele foi ter feito um rearranjo dessas concepções de um modo de partida para jovens e adultos, mas que também chegou a crianças, dentro da educação básica.

O que o senhor aprendeu com ele?

Que humildade intelectual é sinal de inteligência e não subserviência. E segundo é que o trabalho sério precisa ter bastante alegria e seriedade não é sinônimo de tristeza. Ele era sério, mas alegre. Não gargalhava. Era um modo mais contido de rir. Um modo muito gostoso. Era uma pessoa absolutamente afetiva e séria. Foi meu chefe. Não admitia negligência, desatenção, não abria mão da autoridade, mas nunca foi autoritário. Portanto, a mim, é inspirador.

O que a educação brasileira poderia se aproveitar mais de Paulo Freire para avançar?

Paulo Freire era um defensor, ainda como secretário em 89, 90 e 91, e ainda em tempos anteriores, do uso de tecnologia no cotidiano como um suporte no trabalho pedagógico. Ele trouxe para a secretaria de São Paulo a necessidade de projetos ligados ao mundo dos computadores, no começo da década de 90, no qual até os computadores pessoais eram recentes.

Hoje uma das coisas que a educação pública se beneficiaria e ele sem dúvida defenderia era o uso mais massivo do apoio que a tecnologia oferece sem que ela seja substitutiva, mas como complementaridade necessária para fazer um melhor trabalho. É possível fazer um bom trabalho sem tecnologia? Sim. É possível fazer o melhor com tecnologia? Paulo Freire diria que sem dúvida.

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E o que mais?

Uma boa parte das escolas que formam a elite no país, as privadas, se coloca dentro da concepção freiriana.  Isto é, o aporte dialógico, a ideia de que é preciso fazer a leitura do mundo para depois da palavra, a noção de levar em conta o que a comunidade tem, não entender — e isso é usual em escolas particulares — que apenas quem é docente tenha a ideia de educação e a família também essa possibilidade.

Paulo Freire na formatura da Faculdade de Direito em 1947 Foto: Divulgação Itaú Cultural
Paulo Freire na formatura da Faculdade de Direito em 1947 Foto: Divulgação Itaú Cultural

A Educação de Jovens e Adultos, que foi a primeira bandeira de Paulo Freire, teve o menor investimento no século 21 em 2020. Há um caminho em Paulo Freire para avançar nisso?

Não obrigatoriamente na metodologia freireana encontraremos toda a alternativa. Quando ele propôs a metodologia para adultos não havia uma série de coisas do nosso cotidiano. Não havia toda a influência do mundo digital. Hoje há pessoas capazes de alfabetizar um adulto utilizando os celulares, que é um aporte. Paulo Freire não chegou a conhecer os mobiles.

Naquilo que Paulo Freire pensou, ele ficaria envergonhado pelo que não foi feito. A Constituição de 1988 colocou a previsão imperativa de erradicação do analfabetismo adulto. Houve sucessivas gestões que não lidaram de modo suficiente com o tema. Afinal de contas, o que se resolveu foi a extensão do prazo. É vergonhoso, para uma nação tão poderosa como o Brasil, ainda ter quase 13 milhões de pessoas com mais de 15 anos de idade que não conseguem ler o lema da própria bandeira.

Como o senhor imagina que Paulo Freire atuaria nesse cenário?

Fazer como Paulo Freire não é fazer o que ele fez. É o que ele faria se ele estivesse agora nessa circunstância. Ele o fez num outro momento.

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E o que ele faria?

Várias coisas. Se tivesse ligação com a gestão pública da educação nacional, faria um projeto de educação. Estamos sem projeto. Não há nitidez de como se pensa a educação de jovens e adultos, qual o projeto para formação docente, como se implanta de fato nossa Base Nacional Comum Curricular, quais são os passos para alfabetização que não sejam os planos, como se dá o financiamento. Paulo Freire, sem dúvida, pensaria primeiro em elaborar um projeto que não tivesse apenas o P de projeto, mas também o P de pessoas (quem faria?), o P de prazo (como faríamos e em quanto tempo?), o P de provimento e o grande P de programa.

O que o senhor sente quando vê Paulo Freire ser um objeto de ódio?

Alguma recusa ao conjunto da filosofia de Paulo Freire não é nada de hoje. O que se tem hoje é uma exacerbação por parte de algumas pessoas e grupos e uma recusa menos qualificada do que já aconteceu em outros momentos. Paulo Freire jamais imaginaria que a concepção que ele elaborou seria unânime. Nem por conta de direção, de que parte se tomava e interesses que acolhia, e também porque nenhum de nós constrói uma concepção blindada a qualquer tipo de reparação ou restauração.

Não há novidade. Qualquer pessoa que lide na produção de conceitos e práticas está sujeita a essas condições. O que temos hoje é algo marcado em grande medida por dois movimentos. Um movimento de recusa a uma parte ou totalidade do pensamento freiriano porque não o entende e isso acaba produzindo no desconhecimento uma busca de rejeição e o outro porque exatamente entende o que ele levantava e aí sim tem um anteparo de enfrentamento de base ideológica.

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No primeiro a não noção do que é leva a uma recusa sem argumentação. O segundo, a recusa porque se entende o que ele propôs, pode ser de dois modos. Aquela que é safada, dissimulada, porque muda o que de fato Paulo Freire colocou, de maneira a a dar outra forma do que ele propôs. Portanto, é uma critica com má intenção. E existe a crítica estruturada, sedimentada e feita com decência de argumento.

O que se deseja é o que se deseja é que a recusa ou o apoio seja feito com consciência e não com desconhecimento. E que no bloco que tem uma recusa porque entende o que ele escreveu que seja feita de modo argumentativo, com racionalidade que possa servir para o contributo.

Paulo Freire é um democrata. Jamais seria contra que alguém contra ele fosse (risos). Ele seria contra que quem contra ele fosse não pudesse ser contra ele. Em momento algum, Paulo Freire seria conhecido como um filósofo da educação na contemporaneidade, propugnador da ideia de diálogo se ele, ao propor a noção dialógica, recusasse discordância e a objeção. Jamais acharia que quem contra ele é, não pudesse sê-lo. Ele somente acharia que se tivesse algum tipo de contrariedade ela pudesse ser argumentada. E não cercada de retórica furiosa e, em alguma medida, sem uma intenção nítida.

Uma das críticas do bolsonarismo é de que Paulo Freire promoveria ideologização nas escolas. Isso se diz baseado na defesa do educador de que a educação é política e isso é indissociável. Uma educação política é, necessariamente, ideologizada?

Quando Paulo Freire dizia que a educação é um ato político, em nenhum momento dizia que era um ato partidário. Ele disse que todo ato de educação, pedagógico, de intervenção de base formativa tem junto com ela a necessidade de lidar com a noção da interferência na vida da comunidade. Comunidade, no grego antigo, é polis, de onde vem a palavra política. Posso usar, em vez da palavra política, uma palavra de origem latina para comunidade de vida que é civitadem, da onde vem cidade e cidadania.

Quando ele diz que é política, poderia dizer que é um ato de cidadania. A ideia de doutrinação, de partidarização e de dar cunho um estritamente ideológico não compõe o pensamento de Paulo Freire. Em nenhum momento, ele teria conexão com a ideia de que educação é para fazer a cabeça das pessoas. Isso é o contrário do conjunto da obra quando ele falava de liberdade, autonomia e emancipação.

E se é algo que a ideologia tem como componente possível (e não obrigatória) é a dominação das cabeças. E Paulo Freire tem uma percepção contrária sobre a pedagogia que liberta e não aprisiona. Por isso é uma má compreensão que pode ser movida por desconhecimento ou má intencionalidade. Quem estudou de fato a obra de Freire, sabe que ele disse que educação é um ato político, mas jamais diria que é um ato ideológico, partidário e doutrinário.

Quando se tem uma discussão de escola sem partido, se isso fosse ligado a uma discussão mais densa, Paulo Freire diria que é óbvio que uma escola deve ser sem partido. É evidente. Educação com partido não é libertadora. Por isso pode se trazer essa reflexão, mas não encontra base no que ele escreveu.