Patentes e tradição

Com a corrida pelas patentes psicodélicas, povos indígenas lutam para proteger saberes tradicionais

Carlos Minuano Colaboração para Ecoa, de São Paulo Anatoly Kireev/Getty Images/iStockphoto

Após décadas de estudos, pesquisas recentes estão confirmando o potencial terapêutico da ayahuasca para a depressão. Boa notícia para quem sofre da doença. Nem tanto para os povos indígenas da Amazônia, que há séculos utilizam a beberagem em rituais religiosos e medicinais.

Para eles, o desenvolvimento de novos tratamentos com derivados sintéticos da substância, que devem chegar ao mercado através de patentes farmacêuticas, acende o alerta de que, mais uma vez, o conhecimento tradicional não terá o devido reconhecimento.

O comportamento se repetiu ao longo da história. Muitos produtos comerciais já foram desenvolvidos a partir do conhecimento indígena sem que comunidades levassem algo por isso, do histórico guaraná ao adoçante estévia, usado pelos guarani, entre outros, como guaco, açaí e jambu, tratados como "conhecimento difuso" e "sem dono".

E não é apenas o setor farmacêutico que está de olho no mercado emergente dos psicodélicos. Segundo dados da plataforma Lens.org, atualmente, o maior detentor de patentes com DMT, substância psicodélica presente na ayahuasca, é a multinacional Philip Morris, que não atua na área terapêutica.

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Rastreando o conhecimento

No campo das patentes, proteger direitos indígenas não é fácil. A biotecnologia possibilita transformar informação genética em digital, facilitando o trânsito do conhecimento por diferentes meios. "Isso dificulta o rastreamento ou a identificação de produtos beneficiados por saberes indígenas", diz a pesquisadora do Instituto Socioambiental (ISA), Nurit Bensusan.

Segundo ela, o princípio ativo de uma planta com propriedades medicinais usadas por uma comunidade indígena pode ser facilmente sintetizado. "Alguém pode pegar a informação genética, colocar em uma bactéria para produzir a substância e depois alegar que nem usou a planta", explica a pesquisadora, que também representa a Associação Brasileira de Antropologia no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen), do Ministério do Meio Ambiente.

Uma proposta dos povos indígenas é criar processos de rastreamento e identificação das comunidades que fazem uso de determinadas plantas e de como fazem. "Isso vale para a ayahuasca e outros elementos da fauna e flora brasileira compartilhados por diferentes etnias", afirma Cristiane Julião, do povo pankararu, que representa o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) no CGen.

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Ponto fora da curva

Uma exceção no reconhecimento dos direitos indígenas é o processo contra a empresa Tawaya, que usou indevidamente o conhecimento tradicional ashaninka na fabricação de um sabonete de murumuru (planta amazônica de cujas sementes se faz óleo e manteiga usados em cosméticos). A multa foi de R$ 5 milhões. Mas, a decisão final que saiu em 2019 é um ponto fora da curva. De modo geral, o conhecimento tradicional continua sendo roubado. Uma pergunta que fica é: não há nenhuma proteção?

Uma das vias atuais é a lei da biodiversidade que prevê, por exemplo, no caso de pesquisadores estrangeiros, a necessidade de consentimento do Estado Brasileiro para acesso ao patrimônio genético ou trânsito de material biológico.

"Se há conhecimento tradicional associado, há necessidade de se respeitar os protocolos comunitários indígenas que podem consentir com a pesquisa, com celebração de contrato de repartição de benefícios", explica o advogado especialista em direitos indígenas Konstantin Gerber.

Também há tratados internacionais. Gerber cita como exemplo o Protocolo de Nagoia, que detalha o mecanismo de repartição de benefícios de pesquisas genéticas com a biodiversidade. Aprovado pelo Congresso no ano passado, o tratado aguarda promulgação de decreto presidencial.

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Novos arranjos possíveis

Na prática, o conhecimento tradicional segue sem proteção porque mecanismos existentes não dão conta da complexidade do tema, afirma a pesquisadora do ISA Nurit Bensusan.

A lógica da propriedade intelectual não funciona para proteger esse tipo de conhecimento, de natureza tão coletiva e compartilhada, defende Nurit. "A melhor solução é pensar novos arranjos possíveis de pesquisa". Ela cita como uma possibilidade a celebração de convênios com universidades que incluam pesquisadores e estudantes indígenas.

O atual momento de ameaça aos povos indígenas dificulta ainda mais a proteção do conhecimento tradicional, alerta a pesquisadora. "Vidas, territórios e até identidades estão em risco".

Além da covid-19 que está dizimando aldeias, ela se refere a uma resolução recente da Funai, que mudou os critérios de definição de quem é ou não indígena e a uma instrução normativa conjunta do Ibama e - novamente - da Funai, que abriu ainda mais espaço para a exploração no interior de terras indígenas.

"O que está em curso é um conjunto de medidas anti-indígenas do governo Bolsonaro", diz Samara Pataxó, advogada e assessora jurídica da APIB (Associação dos Povos Indígenas do Brasil).

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Direitos e sustentabilidade

Entre os desafios para o reconhecimento de seus direitos, os indígenas enfrentam a disparidade de forças. Há uma confluência e conflito de saberes. De um lado, a ciência, do outro o conhecimento tradicional. Eles se encontram, nem sempre se entendem, num jogo repleto de desequilíbrios gritantes. Afinal, um deles tem um enorme poder socioeconômico e político.

O atual flerte do mercado com o chá psicodélico amazônico, por exemplo, pode trazer impactos importantes. E não apenas para os indígenas, mas também ao meio ambiente. O alerta vem de um artigo científico aceito para publicação na revista "Transcultural Psychiatry", ao qual Ecoa teve acesso.

Para os autores, dois brasileiros, o neurocientista Eduardo Schenberg e o advogado Konstantin Gerber, há um risco potencial para a sustentabilidade das plantas (que compõem a bebida), que segundo eles, na Amazônia, se aproximam de um nível crítico.

"Considerando a demanda extremamente alta para atender milhões de pacientes deprimidos, a medicalização da ayahuasca sem uma regulamentação adequada pode ser prejudicial aos povos indígenas e ao manejo do meio ambiente local", afirma o artigo.

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Compensação poderia ser caminho

Caminhos para proteger o conhecimento indígena já existem há décadas, mas infelizmente não são trilhados, afirma o líder indígena, escritor e ambientalista Ailton Krenak. Segundo ele, o capitalismo espertalhão encontrou uma outra via, para não pagar nada. "Órgãos internacionais tornaram o debate sobre patentes algo complexo e distante dos povos indígenas."

Krenak se refere especialmente à Convenção da Biodiversidade, assinada por 144 países durante a Eco-92 (Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), realizada no Rio de Janeiro.

"O tratado estabeleceu que acesso a recursos genéticos associados a conhecimentos implica em consentimento prévio e informado do povo relacionado com aquele bem". A convenção prevê ainda pagamento de royalties para medicamentos ou produtos derivados de saberes tradicionais.

Porém as discussões aqui no Brasil - prossegue o ambientalista - ficaram restritas a uma comissão que, embora tenha a participação de lideranças indígenas, produziu mais papel do que resultados.

"Nenhuma comunidade indígena no Brasil ou na bacia amazônica inteira conseguiu até hoje concluir algum processo para compensação pelo uso de algum recurso genético associado a conhecimento tradicional."

Por ser signatário da convenção, o país deveria criar mecanismos e instrumentos próprios para proteger a propriedade intelectual indígena, observa Krenak. Ele sugere, por exemplo, a criação de uma plataforma com um inventário de recursos genéticos associados a conhecimentos tradicionais que permitisse localizar e identificar os povos

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Ciência e saberes tradicionais

A dificuldade de reconhecimento parte da relação distante entre a cientistas da academia e cientistas da floresta. "A ciência [não indígena] vê os saberes tradicionais como algo menor, e que serve no máximo como um subsídio para pesquisas", afirma a pesquisadora Nurit Bensusan. "Há uma desvalorização que abre um caminho cruel para a má-fé de empresas que querem se apropriar desses conhecimentos sem ter que pagar nada."

No caso dos psicodélicos, existem inúmeros pedidos de patentes para composições farmacêuticas, métodos terapêuticos e derivados sintetizados envolvendo DMT e psilocibina, algumas concedidas, outras em andamento.

Na opinião da pesquisadora Bia Labate, doutora em antropologia social e diretora-executiva do Instituto Chacruna de Plantas Psicodélicas Medicinais, projetos envolvendo ayahuasca devem incluir consulta prévia e reciprocidade com os povos indígenas.

Mas ela não vê riscos imediatos para o Brasil. "Não creio que estamos perto de uma medicalização da ayahuasca. Suas raízes culturais e religiosas no país são muito profundas".

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