'Pare! Meu Corpo!': Saiba como a Suécia usa a educação para prevenir violência sexual contra crianças

Pioneiro na abordagem do assunto com alunas, país nórdico foca igualdade e direitos sobre o próprio corpo

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Isi de Paula
Estocolmo (Suécia)

Abolir todos os tipos de violência contra crianças é um dos objetivos da Agenda 2030 das Nações Unidas, tarefa que tem gerado esforços conjuntos internacionais desde 2016, quando foi criada a Parceria Global pelo Fim da Violência contra a Criança.

Dentro desse grupo, a Suécia foi o primeiro país a tomar a iniciativa de se tornar modelo, ou seja, de compartilhar aprendizados e experiências que vêm dando resultado.

Material escolar da campanha "Stopp! Min kropp!" (Pare! Meu Corpo!), lançada pela organização Rädda Barnen (ramo sueco da Save the Children International)
Material escolar da campanha "Stopp! Min kropp!" (Pare! Meu Corpo!), lançada pela organização Rädda Barnen (ramo sueco da Save the Children International) - Rädda Barnen

O que torna a experiência nórdica uma referência mundial? Uma boa forma de entender isso é olhar para como eles lidam especificamente com a prevenção da violência sexual, uma das formas mais comuns de abuso contra crianças e adolescentes.

O foco é a educação, que já se tornou uma tradição no país, indo além da escola e se estendendo a famílias, órgãos governamentais, organizações e até mesmo meios públicos de comunicação.

Pode-se dizer que a história começa já nos anos 1910, quando filmes informativos começaram a ser exibidos abertamente ao público em salas de cinema. Ou nos anos 1930, quando educadores ativistas desafiavam a lei que proibia falar sobre métodos preventivos e rodavam o país levando informação e auxílio a mulheres trabalhadoras.

Ainda nessa década foi fundada no país a Associação Nacional de Educação Sexual (RFSU, na sigla em sueco), órgão sem fins lucrativos que é até hoje umas das principais autoridades no que se refere à saúde sexual e reprodutiva dos cidadãos.

Em 1955, a Suécia se tornou o primeiro país do mundo a introduzir a educação sexual como disciplina obrigatória nas escolas. Com o passar dos anos, essas aulas mudaram de formato e de proposta.

Na década de 1970, o título da matéria passou a incluir o termo convivência (sexo e convivência), esclarecendo que a vida sexual tem outros propósitos para além da reprodução.

O foco agora é em questões como saúde física e mental, igualdade de gênero e o direito de cada um de decidir sobre o seu próprio corpo. Foi pensando nisso que a agência nacional de educação do país, a Skolverket, alterou novamente, no ano passado, o plano escolar da disciplina, que passou a se chamar sexualidade, consentimento e relações.

A mudança visa deixar ainda mais claro o quanto a disciplina é fundamental em prevenir e combater diferentes formas de intolerância, violência e opressão, explica Ingrid Essegard, do conselho escolar da agência.

Material produzido por alunos de ensino médio da Suécia em aulas de marcenaria
Material produzido por alunos de ensino médio da Suécia em aulas de marcenaria - Jenny Johansson/Divulgação

A palavra consentimento, aliás, entra no vocabulário já na pré-escola. Junto aos professores, as crianças são estimuladas a adquirir consciência corporal e expressar quais interações físicas são ou não bem-vindas. Um marco nessa abordagem veio em 2013, quando a organização Radda Barnen (ramo sueco da ONF Save the Children International), lançou a campanha "Stopp! Min kropp!" (pare! meu corpo!) —equivalente ao "meu corpo, minhas regras".

A ideia é oferecer material didático sobre consentimento e, ao mesmo tempo, um guia para adultos, pais ou professores sobre como se comunicar com as crianças sobre o tema. São livros ilustrados, animações em vídeo e atividades voltados para estudantes da pré-escola ao ensino fundamental. Com o sucesso da campanha, "stopp! min kropp!" se tornou uma expressão comum no dia a dia do país.

A RFSU é outro órgão que dispõe de um banco de métodos para a sala de aula, com temas que variam de acordo com a idade dos alunos. Com crianças de 10 a 13 anos, por exemplo, a sugestão é falar sobre puberdade, relacionamentos e sentimentos com relação ao corpo.

Para adolescentes a partir dos 14 anos, há assuntos mais avançados, como sexo seguro e aborto. A questão do consentimento é recomendada para todas as idades, e o material é revisado e atualizado em colaboração com a agência nacional de educação.

A ideia, diz Hans Olsson, especialista em educação sexual da RFSU, é garantir que a educação sexual nas escolas tenha um caráter motivador, ou seja, que foque nos pontos positivos da sexualidade e das relações, dando suporte à promoção da saúde e do bem-estar.

"O ensino deve preparar os alunos para saber o que fazer em diversas situações. Por exemplo, como saber o que o outro quer?, como mostrar o que eu quero?, como usar camisinha ou absorvente?, como começar ou terminar um namoro?, onde posso me testar ou procurar ajuda?, entre outros."

Outro foco da reformulação da disciplina sexualidade, consentimento e relações é garantir que o assunto seja tratado de forma interdisciplinar, explica Essergard, da agência nacional de educação, integrada a biologia, religião e história.

Ou mesmo em matérias mais improváveis, como foi o caso da escola de ensino médio Ralambshovsskolan. Lá, os alunos usaram as aulas de marcenaria para abordar o tema, esculpindo no material sua visão sobre consentimento, conta a reitora, Jenny Johansson.

O fato de as crianças começarem cedo a discutir essas questões e receber informação sobre seus direitos e deveres é o que faz a diferença no modelo sueco, diz Bartira Fortes, artista e pesquisadora brasileira que vive no país há 14 anos.

"Ainda não é perfeito, mas o importante é que existem espaços onde se pode falar abertamente e obter informação e apoio." A constatação vem da convivência com o enteado Jay Cusick, que aos 13 anos já tem uma perspectiva sobre a importância da educação sexual na prevenção à violência.

Transexual, Jay tem usado o acesso à informação como ferramenta para combater o bullying e trazer temas como transfobia à tona dentro da sala de aula.

Essegard diz que falar sobre a questão identitária é um dos pontos centrais no novo plano da disciplina.

O caso de Jay ilustra como a educação sexual no país se dá em parceria entre escola, família e outras instituições.

Bartira Fortes com o enteado Jay Cusick e o marido Carlos Borges
Bartira Fortes com o enteado, Jay Cusick, e o marido, Carlos Borges - Divulgação

Além da psicóloga do colégio, ele tem acesso gratuito a consultas com especialistas na RFSL, ramo da RSFU voltado para pessoas que se identificam como queer, e ao BUP, o órgão estatal de psiquiatria voltado para crianças e adolescentes, também gratuito, onde ele receberá acompanhamento ao longo de todo o processo de transição.

Pais e responsáveis também têm acesso a uma central de atendimento onde podem tirar dúvidas e receber apoio psicológico .

A adolescente Lin Buchardt, 13, lembra que o seu professor de educação sexual distribuiu uma lista de organizações onde os alunos podem receber informação e apoio. "Também achei importante ele ter falado sobre consentimento. Não é só perguntar. A pessoa também tem que ver a linguagem corporal do outro. Foram dicas para a vida", conta.

Em 2021, a disciplina se tornou obrigatória também nos cursos de capacitação do corpo docente. O objetivo é preparar melhor os educadores para tratar o assunto com uma linguagem acessível e interessante para as diferentes idades.

Para Lin, que teve professores de diferentes gerações, houve diferença. "O nosso novo professor tornou o assunto interessante. Às vezes com um teatrinho, para não ficar tão pesado. Mas também falando bem sério. Ele nos deu exemplos, mostrou vídeos do RFSU, e nós escrevemos textos, fizemos quiz no celular. Achei isso importante, porque havia crianças que não entendiam várias coisas", relata.

As novas gerações de estudantes também trazem novas demandas para o ensino, conta Elin Eriksson, professora da matéria na escola de ensino médio Globala Gymnasiet.

"Talvez precisemos refletir sobre introduzir certos assuntos ainda mais cedo, já que tudo está disponível na internet, e muitos alunos já têm sido expostos a esses assuntos quando são levantados na sala de aula", diz. Foi conversando com os jovens, por exemplo, que ela tomou ciência de plataformas como o OnlyFans, que tem sido usada para veicular conteúdos pornográficos.

Além disso, Elin também considera importante informar os estudantes sobre como fazer denúncias, para combater a subnotificação.

Segundo a fonte mais utilizada no país atualmente para números relacionados a diversos tipos de violência, o Conselho de Prevenção de Crimes (BRA, na sigla em sueco), o número de crianças e adolescentes de até 17 anos que já foram vítimas de algum tipo de abuso sexual é de 1 em cada 10, no caso das meninas, e 1 em cada 20 para meninos.

Mas relatórios do conselho mostram também que apenas 2 em cada 10 casos de abuso sexual são denunciados.

Por outro lado, os números na Suécia são altos em comparação ao resto da Europa. Considerando denúncias de abuso sexual em geral, o país fica no topo dentro do continente —e tem um dos maiores índices do mundo.

Os dados podem ser reflexo da educação sexual no país, que prepara a eventual vítima para identificar e denunciar. Além disso, a legislação nórdica define abuso sexual de forma mais ampla que outras nações.

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