Brasil

Para educadores, debate sobre ficha criminal dos pais é secundário para ensino domiciliar

Medida Provisória do governo que quer legalizar educação em casa vai vetar a prática por pais condenados criminalmente; segundo defensor público, restrição seria inconstitucional
Regulamentação da educação domiciliar é uma das prioridades do governo Foto: Isabella Guerreiro / .
Regulamentação da educação domiciliar é uma das prioridades do governo Foto: Isabella Guerreiro / .

RIO - Em redação pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a Medida Provisória (MP) que pretende legalizar a educação domiciliar trará no texto uma restrição quanto às famílias que poderão adotar a prática. Segundo a MP, pais condenados criminalmente serão proibidos de ensinar os filhos em casa . Uma lista de crimes deve constar do documento, como revelou O GLOBO nesta quinta-feira. Estariam impedidos de praticar a educação domiciliar pais que tenham sido condenados por homicídio doloso, tráfico de drogas e crimes sexuais.

A prática do ensino domiciliar é atualmente probida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e a legalização dela por uma MP tem sido uma das ações prioritárias do ministério de Damares Alves. O tópico sobre o veto de pais condenados criminalmente, para especialistas em educação, é considerado "impertinente e secundário", nas palavras de Jamil Cury, professor de Política Educacional da PUC-MG.

— (Tratar sobre a ficha criminal de pais) Neste momento é uma discussão absolutamente impertinente, inócua, secundária. Se o que se quer é permitir que a educação seja dada no lar, a primeira pergunta não é sobre quem é o pai ou a mãe da criança. Até porque, se este responsável é alguém que já cumpriu a pena pelo crime que cometeu, ele não está mais na condição de réu, e proibi-lo de fazer algo seria como penalizar duas vezes a mesma pessoa — diz o especialista. — Discutir isso antes de outros tópicos sobre a educação familiar em si é algo absolutamente inócuo.

Procurado pelo GLOBO, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou que não comentará a Medida Provisória antes que sua redação final seja apresentada. Técnicos que trabalham no texto querem incluir na MP um rol de delitos exemplificativo, e não taxativo, de forma a não proibir pais condenados por delitos menos graves. O ministério, no entanto, não respondeu como se dá a avaliação e a escolha dos crimes na lista.

Para Jamil Cury, a discussão em torno da Medida Provisória que pretende legalizar o chamado homeschooling, ao focar nos tutores, deveria se ater sobretudo às competências destes para o ensino das crianças.

— Uma primeira questão a ser posta é: será que vamos permitir que pessoas não profissionais assumam essa tarefa que normalmente é cumprida por pessoas capacitadas, por professores preparados para isso? E outra questão realmente importante é sobre a socialização das crianças, porque é pela escola que a pessoa se torna um cidadão, pela convivência com os outros. A escola é o lugar em que as crianças, os adolescentes e os jovens deveriam aprender tanto os fundamentos da igualdade, quanto o respeito às diferenças. A organização familiar é importante, sim, mas é insuficiente para cumprir essa formação do sujeito como cidadão — acrescenta Cury.

Doutora em Educação pela PUC-Rio, Andrea Ramal concorda quanto à necessidade de uma regulamentação mais ampla para que a educação domiciliar funcione. Ela lembra o exemplo dos Estados Unidos, onde a prática é regularizada e cada estado decide seus parâmetros para o controle da frequência, a certificação e a tutoria, entre outros detalhes.

— Este item específico, sobre proibir pais condenados criminalmente, teria que ser analisado dentro de um âmbito maior, de como o ensino domiciliar seria estruturado no Brasil. Além disso, se esse for um critério, outros elementos surgem associados a ele: o tutor pode ter ficha criminal? E como fica a situação de quem já cumpriu a pena? Antes disso, porém, muitos outros fatores precisam entrar na pauta — afirma a educadora. — Creio que, antes de entrar nestas questões específicas, temos ainda muito a discutir.

Restrição seria inconstitucional

Segundo o coordenador de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Rodrigo Azambuja, a proibição prevista no texto da Medida Provisória é inconstitucional. Ele explica que uma MP não pode dispor sobre o direito penal, algo que só poderia ser feito por meio de um projeto de lei.

— Do ponto de vista formal, isso já configura uma inconstitucionalidade — afirma Azambuja. — Para além disso, existem vários outros problemas. Se o texto da MP não estabelecer um limite de tempo, por exemplo, entre o crime e a restrição ao homeschooling, está se criando um efeito permanente da condenação criminal. Ou seja, a medida acaba dando um caráter perpétuo à condenação. Se o sujeito cometeu um crime de tráfico aos 18 anos, por exemplo, cumpriu a pena e está agora com 30 anos, ele não responde mais por aquele crime e, sim, poderia educar o filho.

Outro ponto problemático, segundo Azambuja, diz respeito à lista de crimes mencionados pela MP a que o GLOBO teve acesso. Existem crimes, ele explica, que implicam na perda do poder familiar ("Quando um pai abusa de um filho, ou mata um familiar, por exemplo, ele perde o poder sobre a criança e não pode gerir a educação dela"). Na MP, está listado o tráfico de drogas — crime que não implica na perda do poder familiar —, além de homicídio e agressão sexual — que só levam à perda de poder sobre os filhos caso tenham sido cometidos contra a própria família.

Por fim, Azambuja lembra que o veto a condenados criminalmente ainda pode agravar o estigma já enfrentado por pessoas que, depois de cumprirem a pena, tentam se reintegrar à sociedade.

— Isso dificulta ainda mais a vida do sujeito que tenta se reinserir, além de ser uma interferência muito grande no seio familiar. Ora, se o sujeito está no poder da família, por que essa restrição? Por que alguém que foi condenado por tráfico e já cumpriu sua pena não poderia educar o filho? Isso, inclusive, contradiz a própria proposta da educação domiciliar.

'Questão de proteção da criança'

O texto que inspirou a Medida Provisória foi entregue ao ministério pela Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), cujo diretor jurídico, Alexandre Magno Moreira, tem cargo na pasta. O presidente da associação, Rick Dias, diz que o texto apresentado ao governo no final de janeiro não trazia o tópico sobre a ficha criminal dos pais, que teria sido inserido pelo ministério.

— Esse tipo de questão (sobre os antecedentes criminais dos pais educadores) a gente não pensa. Mas, se o governo pensa assim, é por uma questão de proteção da  criança — afirma Dias, para em seguida completar: — Eu não tenho esse receio (de que familiares que tenham sido condenados criminalmente adotem o homeschooling), porque os pais que tiram os filhos da escola para educá-los em casa são muito preocupados com os filhos.

O presidente da Aned explica o raciocínio:

— As pessoas me perguntam: "Mas e se uma família miserável, marginal mesmo, e se um pai drogado, bêbado e uma mãe assassina, que expõem o filho à violência e à pornografia, e se uma família dessas resolver fazer educação domiciliar?" Minha resposta é: "Eles não estão nem de longe dentro do perfil da família que faz homeschooling, porque homeschooling dá trabalho". É muito mais fácil colocar seu filho numa van e mandá-lo para a escola.