Pandemia movimenta cidades e estados a aprovar projetos de lei de ensino domiciliar

Pauta também é prioridade do governo federal, que busca sancionar modalidade até o meio do ano

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São Paulo

Estados e cidades das cinco regiões brasileiras se movimentam para avançar com projetos de lei de ensino domiciliar durante a pandemia de coronavírus. Entre elas, ao menos nove capitais e quatro estados brasileiros apresentaram novos projetos de lei. Outros três municípios e o Distrito Federal aprovaram a modalidade no período.

Curitiba, Rio de Janeiro, Goiânia, Natal, Porto Alegre, Manaus, Fortaleza, São Luís e Belo Horizonte estão entre as capitais. Já os estados são Paraná, Rio de Janeiro, Goiás e a Bahia.

A obrigatoriedade do ensino a distância durante a pandemia impulsionou a agenda do chamado homeschooling pelo Brasil, tradicional entre grupos religiosos e conservadores. É também prioridade do governo Bolsonaro, que busca a aprovação do projeto de lei no primeiro semestre deste ano.

Nas justificativas, autores citam a pandemia como exemplo, ora para manter os pais que não querem enviar os filhos para escola dentro da lei, ora para reafirmar a legalidade da modalidade.

Também se respaldam na decisão de 2018 do STF (Supremo Tribunal Federal), que determinou que o ensino domiciliar não é inconstitucional. Sua oferta, porém, depende de regulamentação legislativa.

Em alguns casos, como do município do Rio de Janeiro com o projeto de Carlos Bolsonaro (Republicanos-R, já existiam PLs do mesmo teor. No caso do filho do presidente, as propostas não foram anexadas, mas outras, como a do estado do Rio, foram.

Ao menos outros sete estados já tinham projetos de lei anteriores à pandemia. Eles remetem a 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, quando anunciou que a educação domiciliar estava entre uma das suas principais pautas na área da Educação.

Apesar da urgência do governo federal em aprovar o projeto nos primeiros seis meses do ano, a relatora do texto que deve ser apreciado pelo Congresso, Luísa Canziani (PTB-PR), disse em entrevista à Folha que pautas estruturantes da educação devem ser prioritárias. A deputada disse também que o projeto prevê vincular as famílias a escolas públicas ou privadas.

As propostas e leis dos estados e municípios, porém, possuem suas próprias determinações.

No Distrito Federal, a lei aprovada autoriza a modalidade, porém ainda seria necessário uma lei complementar para que o ensino domiciliar fosse considerado regulamentado. Lá, a opção por ensinar os filhos em casa é exclusiva dos pais ou responsáveis e, para isso, basta um cadastro na Secretaria de Estado de Educação.

A família, no entanto, deve demonstrar aptidão técnica através de um laudo, que deve ser validado por uma banca composta por um assistente social, um pedagogo e um psicólogo, ou contratar um profissional capacitado. Eles também são responsáveis pelo desenvolvimento social da criança e o aluno deve passar por avaliações para receber o diploma. Segundo a lei, a família deve ser acompanhada por um conselheiro tutelar.

A regulamentação do ensino domiciliar nos municípios e estados, porém, só pode ocorrer mediante a uma lei federal. Caso contrário, elas não têm validade e, se aprovadas, são inconstitucionais. É a avaliação de Nina Stocco Ranieri, professora de direito constitucional e teoria do estado da USP (Universidade de São Paulo).

“A competência para estabelecer diretrizes, bases ou normas gerais de educação é da União, do Governo Federal”, diz. “Já o Congresso Nacional tem competência para legislar sobre diretrizes, bases ou sobre normas gerais da educação. Sem isso, estados e municípios não podem regulamentar nada”, completa Ranieri.

De acordo com a professora, famílias praticantes do ensino domiciliar que estão seguindo as legislações municipais ou estaduais que autorizam a modalidade no local, estão à margem da lei. “As famílias incidem em uma série de outros problemas, como por exemplo a obrigatoriedade da matrícula, que não foi abolida ainda.”

Praticante do ensino domiciliar há três anos, Elisa Flemer e sua família entraram na Justiça para que a adolescente de 17 anos, diagnosticada com espectro autista, possa cursar Engenharia Civil na Escola Politécnica da USP, onde ela passou em quinto lugar com o Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Sem certificado de conclusão do Ensino Médio ela não pode realizar a matrícula.

No pedido de liminar, os advogados da estudantes colocaram como alternativa para que ela consiga seu diploma a realização do Encceja (Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos), em agosto, ou o estudo concomitante do terceiro ano do Ensino Médio com o primeiro ano de Engenharia. Também solicitaram ao juiz que autorize a matrícula na faculdade fora do período ideal.

“As opções que eles colocaram foram puramente burocráticas. Não existe nada, socialmente ou intelectualmente que eu ainda precise me desenvolver”, diz Elisa.

A estudante Elisa Flemer, 17, que fez ensino domiciliar e agora briga na Justiça para ser admitida no curso de Engenharia da USP, para o foi aprovada - Adriano Vizoni/Folhapress

Em Sorocaba (97 km de SP), cidade onde mora, também há um PL para a regulamentação do ensino domiciliar. O projeto foi proposto esse ano após uma cerimônia feita na Câmara dos Vereadores da cidade, quando o autor, o vereador Dylan Roberto (PSC), homenageou a estudante.

Sem alternativa imediata para cursar o ensino superior no Brasil, Elisa espera o resultado das universidades Washington and Lee University, Hamilton College, Stevens Institute of Technology e Colby College, nos Estados Unidos, onde a modalidade é regulamentada em todos os estados. Se aprovada em alguma das instituições, a estudante poderá fazer uma prova que lhe dará o diploma do ensino médio.

Para Maria Celi Vasconcelos, professora do programa de pós graduação em Educação da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisadora do tema, para regulamentar o ensino domiciliar no Brasil, será necessário a criação de um sistema que envolva a família, o estado e as escolas, e tenha condições de analisar os casos individualmente, e ver as motivações dos pais interessados em retirar seus filhos da escola.

"Precisamos ter um protocolo onde os pais fazem uma argumentação e apresentam os motivos pelos quais vão abrir mão desse direito das crianças, que é a escolarização."

O modelo que Vasconcelos acredita ser uma boa opção para o Brasil, é aquele em que o estudante permanece matriculado na escola e realiza suas avaliações na instituição. “Esse é um formato semelhante ao de outros países, em que o aluno só não tem a frequência, justamente porque sua modalidade é a educação domiciliar.”

A urgência de uma legislação sobre o tema, porém, causa estranheza à pesquisadora. “Nós temos questões urgentes que precisam ser retomadas, e esse debate nos tira do centro do debate da escolarização, que já foi exposta em duas legislações e não lograram o êxito de serem cumpridas", disse Vasconcelos, se referindo as metas do Primeiro e do Segundo Plano Nacional de Educação.

"Nosso país ainda não completou o seu processo de escolarização. Nós ainda não fizemos coisas básicas que já estavam previstas na legislação", diz. "Precisamos pensar a escolarização como uma política pública prioritária, mas nós estamos falando só em desescolarização."

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