Pandemia deixa famílias sem notícias dos filhos no sistema socioeducativo
Superlotação das unidades de internação, denúncias de violência e falta de contato com as famílias são desafios do sistema socioeducativo
Por: Júlia Pereira
Um boletim emitido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em setembro mostra que, até o momento da publicação, foram confirmados 4.165 casos de Covid-19 no sistema socioeducativo, sendo 3.226 entre os servidores – com 22 óbitos – e 939 entre os adolescentes em privação de liberdade, sem registro de óbitos, uma alta de 18,7% em comparação aos 30 dias anteriores.
Entre as recomendações do órgão para evitar a propagação do coronavírus no sistema de justiça penal e no socioeducativo estão a adoção de critérios de higienização, afastamento temporário de servidores pertencentes ao grupo de risco e adoção das internações somente em casos excepcionais.
A suspensão das visitas presenciais também foi adotada para evitar a propagação da Covid-19 no sistema, o que fez com que milhares de famílias ficassem sem notícias de dentro das unidades. Foi o que aconteceu com Letícia*, mãe de um adolescente que cumpre medida de internação.
No começo do ano, o jovem foi levado para a Fundação CASA Topázio, no Brás, em São Paulo (SP), onde aguardava decisão sobre a medida socioeducativa que iria cumprir. Ele passou cerca de um mês na unidade, onde ainda recebia visitas semanais da mãe.
No entanto, em março, quando começou a pandemia no Brasil, foi publicada a decisão de internação por tempo indeterminado ao adolescente, que foi transferido para a unidade de Itaquera, na zona leste da cidade, para cumprir a medida. Com as visitas presenciais suspensas, a mãe passou a receber notícias sobre o filho apenas por breves ligações.
“Eu vi uma reportagem que dizia que eles tinham que fazer a videochamada. Só que a Fundação [em Itaquera] dizia que eles não tinham recursos para isso. Tem um mês, um mês e meio, mais ou menos, que começaram as videochamadas”, conta Letícia.
As ligações são semanais com duração de cerca de 15 minutos, sempre sob supervisão da assistente social ou da psicóloga que acompanha o adolescente.
“Um dia, rapidamente, ele me contou que tinha uma pessoa doente lá, mas aí elas mandaram ele parar de falar. Eu fiquei muito preocupada. Com esse coronavírus, tudo a gente acha que é isso. Durante a semana eu fico ligando, perguntando como ele está, se tem casos [de Covid-19]”, relata a mãe.
Como a internação do filho foi definida sem prazo determinado, Letícia vive dias de angústia, recebendo poucas notícias do menino, incerta sobre como ele tem passado os dias e, principalmente, sobre o futuro, quando deixar o sistema.
“Todos os dias, eu consulto o processo dele. É como um vício. Eu acordo e já consulto para ver se tem alguma novidade. Esse é o meu maior medo, não saber como ele vai sair. Eu tenho mais medo por não estar recebendo notícias, eu queria muito que voltasse a visita mesmo que tivesse que ser por um vidro, de longe, para conseguir ter mais acesso. Pela videochamada é impossível”, diz.
O SISTEMA SOCIOEDUCATIVO NO BRASIL
A realidade de Letícia é sentida por outros milhares de mães, pais e famílias no Brasil. Segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), 18 mil adolescentes cumprem medidas de internação no país, providência que compõe o sistema socioeducativo brasileiro.
“O sistema socioeducativo tem como objetivo central trabalhar a responsabilização dos adolescentes pelo ato infracional cometido e projetar junto a esses adolescentes outras perspectivas de trajetória”, diz Marília Rovaron, cientista social e coordenadora de projetos pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).
A medida é definida a partir da gravidade do ato cometido: se o crime for de violência e grave ameaça, como homicídio, roubo e sequestro, o adolescente recebe uma medida socioeducativa de internação; caso o ato infracional cometido não envolva violência ou grave ameaça, como furto ou estelionato, o jovem recebe, na maioria dos casos, medida de liberdade em meio aberto, como liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade.
De acordo com a pesquisa ‘E aí eu voltei pro corre – Estudo da Reincidência Infracional do Adolescente no estado de São Paulo’, divulgado em 2018 pelo Instituto Sou da Paz, 80% dos jovens infratores cumprindo medidas socioeducativas no estado de São Paulo são presos por roubo e tráfico de drogas.
O sistema socioeducativo está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e deve, em teoria, funcionar de maneira diferente ao sistema de justiça criminal comum.
Os adolescentes devem ser colocados em unidades de internação que, em geral, não possuem mais de 60 pessoas; devem ser divididos conforme idade e ato infracional cometido; são avaliados, geralmente, a cada seis meses e recebem acompanhamento de equipe técnica composta por assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e educadores sociais.
As medidas socioeducativas visam, principalmente, a ressocialização dos adolescentes por meio da Educação e inclusão social. As equipes também acompanham as famílias dessas pessoas, preparando-as para acolher os jovens quando saírem do sistema de internação.
“Em geral, existe uma ressocialização muito maior quando o adolescente passa por unidades de internação. Em média, a reincidência na Fundação CASA de São Paulo fica em torno de 20% e no sistema prisional brasileiro as estimativas que têm de reincidência são de 60%”, diz Ariel de Castro Alves, advogado, especialista em direitos da infância e juventude, ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e atual conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos (Condepe).
A proposta do sistema, no entanto, nem sempre condiz com a realidade. Exemplo disso é a superlotação das unidades. Dados do CNMP mostram que há um déficit de quase duas mil vagas em instituições socioeducativas. Além disso, há denúncias de tortura e violência, e nem sempre a estrutura das unidades possibilita a ressocialização almejada.
“O que a gente observa é que se tem uma estrutura dos prédios, um modo de funcionamento que é muito alinhado a uma lógica da segurança, da repressão. O funcionamento dessas instituições acaba sendo muito mais voltado em manter uma ordem interna do que, realmente, poder proporcionar alguma coisa ao adolescente”, observa Bruna Gisi, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.
REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL É A SOLUÇÃO?
“Colocar adolescentes num sistema prisional, superlotado, falido, dominado pelo crime organizado seria condená-los a não serem mais recuperados, ressocializados e reeducados, e a saírem muito pior, muito mais violentos, cometendo mais crimes, gerando mais criminalidade e violência na própria sociedade”, afirma Ariel.
Segundo pesquisa divulgada pelo Datafolha no ano passado, 84% dos brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal no Brasil de 18 para 16 anos.
O sistema prisional brasileiro já é falho e inserir os adolescentes nesse cenário provocaria um risco ainda maior, já que essa população está em uma fase peculiar de desenvolvimento e tudo o que for vivido nessa etapa poderá ter consequências graves para quando chegarem à fase adulta.
“A prisão, na verdade, não produz o efeito que se espera, que é a redução da criminalidade. Ela tem esse efeito de fortalecer organizações criminais, ela tem um efeito nocivo na trajetória do indivíduo”, ressalta Bruna Gisi.
Especialistas afirmam que a redução da maioridade penal não é solução para diminuição dos atos infracionais cometidos pelos adolescentes, mas sim o fortalecimento do sistema socioeducativo e a compreensão da proposta de tais medidas, o que ainda não acontece no Brasil.
Ainda não há uma concordância nacional sobre o que é o sistema socioeducativo. A política está alocada em pastas diferentes pelo país, ou seja, alguns estados entendem a política como uma pauta de educação; outros, como um assunto relacionado aos direitos humanos; além daqueles que entendem que o atendimento socioeducativo deve ser trabalho no âmbito da segurança pública. Essa falta de coordenação em nível nacional dificulta ainda mais o aperfeiçoamento da política.
“A política socioeducativa no Brasil ainda não foi compreendida. Afinal o que é uma medida socioeducativa? Ela é punição? Ela é pedagógica? Esse é um questionamento que é feito desde a década de 90 e até hoje não foi resolvido”, questiona Marília Rovaron.
* Nome alterado para preservar a identidade da personagem.