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'Os meninos estão no limite': a visita de uma antropóloga às escolas de SP

Aula do ensino médio num colégio em São Paulo -  Bruno Poletti/Folhapress
Aula do ensino médio num colégio em São Paulo
Imagem: Bruno Poletti/Folhapress

Do TAB, em São Paulo

21/04/2023 04h00

Na manhã de 27 de março, a antropóloga Isabela Venturoza, 32, se reunia numa sala com 180 alunos do ensino médio em São Paulo. Cercada de adolescentes na faixa dos 14 a 17 anos, ela conversava sobre violência contra mulheres.

Mestra em antropologia social pela USP (Universidade de São Paulo), Venturoza pesquisa masculinidade há mais de dez anos e, desde 2014, tem levado o tema para as escolas. Com os alunos, ela abre a roda para discutir saúde mental, suicídio e o jeito com que homens lidam com conflitos e dilemas (violência também entra na equação).

Tanto em escolas públicas quanto privadas, a experiência ao sentir o pulso dos jovens mostrava meninas com discurso feminista na ponta da língua e meninos um tanto ausentes, sentados no fundo da sala, como se aquele papo não fosse com eles. Mas, depois da pandemia, tudo parece diferente — e o encontro naquela manhã de segunda deixava isso mais nítido.

"Foi ficando mais radical essa cisão entre meninos e meninas. A coisa está mais polarizada dentro das escolas hoje", observa. "Em alguns meninos, percebo até uma outra linguagem corporal, de me desafiarem com olhares ou falando comigo sem olhar para mim."

Há tempos, ela ouve de professores e educadores que o consumo de conteúdo radicalizado, ligado aos "incels" (subcultura digital formada por homens celibatários involuntários - o TAB falou mais sobre esse grupo aqui) está cada vez mais presente. Reflexo disso são as falas ouvidas pela antropóloga no ambiente escolar.

"Eles estão muito resistentes às políticas afirmativas, são contra cotas. O avanço de pautas dos movimentos feministas, antirracistas e LGBTQIA+ incomodaram muito e produziram outros discursos. Os meninos estão se sentindo mais autorizados em peitar qualquer conversa nesse sentido", conta.

Venturoza saiu do colégio refletindo sobre a névoa de tensão sob a sala, pensando sobre a "necessidade flagrante e forte" de continuar falando disso nas escolas. "Os meninos estão no limite."

Quando ligou o celular, viu a repercussão do ataque à escola estadual Thomázia Montoro, na Vila Sônia, zona oeste de São Paulo. Era mais uma tragédia dentro daquele ambiente tão comum a ela. Enquanto Venturoza conversava com os adolescentes, em outro ponto da cidade um aluno de 13 anos, armado com uma faca, matou a professora Elisabeth Tenreiro, de 71 anos, e feriu outras cinco pessoas.

"Tenho ouvido falar sobre cultura de paz, mas ninguém pensa que isso tem a ver com a produção de uma masculinidade, de como os meninos são ensinados a gestar seus sentimentos e sofrimentos."

Escola Thomazia Montoro retoma as aulas uma semana após os ataques - Tomzé Fonseca/Futura Press/Estadão Conteúdo - Tomzé Fonseca/Futura Press/Estadão Conteúdo
Escola Thomazia Montoro retoma as aulas uma semana após os ataques
Imagem: Tomzé Fonseca/Futura Press/Estadão Conteúdo

Grupos reflexivos

Isabela Venturoza é colaboradora do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde de São Paulo desde 2009, ONG que promove encontros semanais com homens denunciados por crimes previstos pela Lei 11.340. É o chamado "grupo reflexivo".

Esses homens de raças, religiões, classes e trajetórias distintas são encaminhados pela Vara Central ou pela Defensoria Pública, mas também há busca espontânea. "Tem participantes que trabalham no Judiciário, que são policiais, que são artistas e que ficam muito preocupados com a própria imagem", ela conta. O objetivo é pensar como o machismo também incide sobre eles de maneira danosa.

É o único serviço na cidade de São Paulo a promover essa discussão com os próprios agressores. "É trazer a pauta da violência contra a mulher como um problema também dos homens, não só com eles sendo o problema, mas também parte da solução."

Com mais frequência, o grupo recebe homens vulneráveis, seja no âmbito da saúde mental ou por questões sociais. Há também um padrão: muitos não identificam o que praticaram como violência.

"Eles responsabilizam muito as mulheres, chegam com muita raiva delas. Falam que são trabalhadores e enumeram muitas situações em que foram vitimados, e não o contrário, traçando uma diferença entre eles e reais agressores: 'Eu não sou um monstro', 'eu não sou um cara que mata mulher', 'ela veio pra cima de mim e eu segurei ela'", explica Venturoza. Aprender a se responsabilizar é algo central no trabalho do grupo.

Isabela Venturoza é antropóloga e pesquisa masculinidade - Divulgação - Divulgação
Isabela Venturoza é antropóloga e pesquisa masculinidade
Imagem: Divulgação

Os homens denunciados são obrigados a participar de 16 encontros, mas há quem siga no grupo há quatro anos, voluntariamente. "Não há uma régua para passar e dizer que o cara foi reabilitado e nunca mais vai cometer violência contra mulher, mas percebo um repertório crítico que vai se ampliando, uma capacidade de perceber quando é violência e quando não é. Muita gente comenta que estava em alguma situação em que poderia fazer algo, mas diz: 'lembrei do grupo e fui embora'. Esse é o grande indicador", observa.

Por causa do trabalho, algumas escolas chamaram Venturoza para falar sobre violência contra mulheres. Na sala de aula, ela vai construindo o pensamento em diálogo com os alunos. "Eu digo que a gente é o quinto país mais violento com as mulheres no mundo, mas que os homens morrem dez vezes mais. Não é uma competição — até porque isso está acontecendo com as mesmas pessoas. Um cara que morre ou mata outro homem na rua é o mesmo que mata ou agride uma mulher em casa", explica.

Diretamente aos garotos, ela pergunta se eles já pediram ajuda quando estão com problemas. Nessa hora, há quem olhe de forma diferente e atenta, mas a resistência é visível.

Ela lembra que, na pandemia, deu uma palestra online para uma escola do interior de São Paulo. Como de costume, as meninas estavam mais atentas e os meninos estavam prontos para desautorizar toda e qualquer fala que que levasse em conta os direitos das mulheres. "Percebi um lugar difícil de mediá-los. Lembro de um menino específico que disse algo no sentido: 'se vocês não andassem peladas por aí, esses casos não aconteceriam'."

Quem lida diretamente com a sala de aula tem alertado como o discurso misógino tem se popularizado entre os estudantes. "Esse conteúdo agora está espalhado por todo lugar da internet, a céu aberto. Não é mais visto como uma anomalia. Faz parte da cena", diz a antropóloga.

Educadores se abrem com Venturoza e relatam que os meninos falam muito em "precisar ser respeitados", tanto pelas meninas com quem se relacionam quanto pelos outros meninos. Às vezes, falam de cometer crimes para serem mais respeitados — por exemplo, num relacionamento com alguma menina, o jovem achar que foi traído e dizer: "eu fui lá raspei a cabeça dela".

Sala de aula do ensino médio numa escola estadual em Itaquaquecetuba, São Paulo - Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem - Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem
Sala de aula do ensino médio numa escola estadual em Itaquaquecetuba, São Paulo
Imagem: Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem

'Caixa do homem'

Ataques em escolas brasileiras sempre foram esporádicos, mas, desde 2022, com o caso das escolas em Aracruz (ES), o fenômeno tem sido mais frequente no noticiário. "São sempre garotos", Venturoza nota. Para ela, é necessário colocar a masculinidade nesse debate.

"Não é novidade homem entrando em lugares e matando todo mundo. Os meninos aprendem que não devem chorar, não devem expressar certas emoções. Mas eles expressam raiva."

Ela cita a chamada "Caixa do Homem", conceito criado nos anos 1980 pelo escritor norte-americano Paul Kivel para discutir masculinidade no singular, ou seja, como se todo homem tivesse as mesmas características predeterminadas para que seja considerado "homem de verdade".

"É um modelo restrito, que afasta os meninos do que seria considerado feminino, de maneira muito essencialista. Eles vão se distanciando das próprias emoções e da compreensão dessas emoções, das formas de lidar com conflito que não sejam pela violência, do cuidado, seja cuidado de si e o cuidado com o outro", explica.

O canal de comunicação é de difícil construção. "Geralmente, essas conversas vêm como uma bronca, e muitos fecham os ouvidos. Começo falando que isso é ruim para eles mesmos, tocar no eu para depois fomentar um olhar para fora. Tenho pensado na vulnerabilidade, porque eles estão tão ferrados. Às vezes você fala 'isso é errado', mas eles respondem: 'muita coisa é errada na minha vida'."

Para a antropóloga, a sala de aula é lugar ideal para construir pontes com os adolescentes e oferecer um lugar de pertencimento — ao que parece, eles lidam com suas frustrações em grupos e fóruns com discursos radicais. "Homens adultos sabem falar de futebol e como pegar mulher, mas não sabem falar de maneira honesta e auto-consciente. É preciso nutrir os meninos de repertórios não violentos, alargando o que é entendido como masculinidade: não é sobre ser fortão, não é não chorar, nem todo homem é isso, isso é só uma fantasia. A gente está produzindo homens, culturalmente, e isso pode ser transformado."