Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Doping na educação

De quanto talento é feito o sucesso na vida escolar?

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Em tempos de baixo astral generalizado e falta de fibra, recomendo o premiado documentário da TV Câmara: “Florestan Fernandes, o Mestre” (2004) acessível em https://youtu.be/jB3TDIv4POk.

O percurso desse gênio é infinitamente mais emocionante e significativo do que as dos seriados que nos acossam. Advertência: vale a pena abstrair um ou outro entrevistado deplorável em prol da história do homenageado. As questões abordadas são atualíssimas: o preconceito, o apoio incondicional ao ensino e saúde públicos, a ética inegociável.

Florestan Fernandes faria cem anos em 22 de julho de 2020. Autor de obras gigantescas como “A Organização Social dos Tupinambá” —tema considerado inabarcável até então—, “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, “O Negro no Mundo dos Brancos”, “Mudanças Sociais no Brasil”, Fernandes foi o sociólogo que revolucionou a sociologia no Brasil.

Ele era filho de uma lavadeira portuguesa, analfabeta e mãe solteira, que temia que os estudos do filho o fizessem ter vergonha dela. Trabalhava e dormia no emprego já aos 6 anos, até que a mãe descobriu as condições desumanas nas quais era mantido. Largou a escola no 3º ano. Trabalhava como garçom no centro da cidade, quando foi interpelado por um grupo de jornalistas e intelectuais curioso em saber o que tanto lia aquele rapaz a cada minuto livre do serviço. Tratava-se de literatura de alto nível. Logo se juntou ao grupo, que o exortou a fazer madureza, recuperando os anos fora da escola —Florestan sempre fora autodidata.

Na mesma época estava sendo fundada a Universidade de São Paulo, cujos professores importados da Europa ministravam as aulas na língua materna, para deleite da elite paulistana, que poderia, a partir de então, estudar em solo brasileiro. Inglês, alemão e espanhol eram os idiomas correntes nas aulas, nos textos a serem lidos e nos trabalhos a serem escritos pelos alunos.

Em 1941, Florestan estava entre os seis aprovados para o curso de filosofia, ciências e letras da USP, curso de meio período —único viável para quem como ele, trabalhava como vendedor.

Sofreu muito preconceito na USP por ser pobre, mas entendia que se fosse negro ainda teria que enfrentar o preconceito racial e a desvalorização historicamente introjetada. No auge do negacionismo racial, Florestan foi contundente na sua oposição à interpretação freyreana de que haveria atenuantes na escravidão brasileira.

Florestan Fernandes, sociólogo e professor
Florestan Fernandes, sociólogo e professor - Eder Luiz Medeiros - 25.nov.10/Folhapress

De engraxate fora da escola a professor convidado da Universidade de Toronto, elogiado por Claude Lévi-Strauss, alvo de inúmeras honrarias e centro de acontecimentos memoráveis, o que tiramos da lição do aluno Florestan Fernandes?

Primeiro, como ele mesmo foi capaz de nos ensinar, ter nascido branco fez diferença mesmo em sua duríssima condição. Segundo, que sem o ensino público sua história acadêmica teria sido impossível.

Terceiro, que só gênios totalmente fora da curva conseguem feitos iguais, que eles são raros e não são representativos da humanidade em geral. Quarto, que o que ele lutou arduamente para conseguir já estava dado de saída para seus colegas de USP —mesmo os infinitamente menos capazes, revelando que meritocracia aqui é o outro nome da violência. Comparável ao doping no esporte.

Gosto de imaginar qual providência essas pessoas a quem tanto admiro estariam tomando numa situação como a nossa. Vejo o professor Florestan Fernandes do alto de seus cem anos, rodeado de jovens estudantes, segurando um cartaz com os dizeres: #ADIAENEM.

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