Descrição de chapéu Dias Melhores

ONG promove educação política e cidadã por meio de jogos lúdicos

Júlia Carvalho fundou a Fast Food da Política em meio à polarização e à crise das instituições

Ivan Finotti
São Paulo

Ela só tem 24 anos, mas entende mais de política do que a maioria dos brasileiros. O trabalho de Júlia Fernandes de Carvalho, afinal, é traduzir os meandros do poder público em jogos de cartas e de tabuleiro para que pessoas normais, como nós, possamos até nos divertir com esse assunto espinhoso.

Saca só algumas das brincadeiras que ela criou: 

1 - Batalha Eleitoral - Um tabuleiro dividido nas fases de pré-campanha, convenção, campanha e apuração, além de dados, fichas e cartas que podem ajudar o candidato (como “apoio da principal emissora de rádio”) ou atrapalhá-lo (“divulgação de fake news”). Detalhe naturalista: é possível infringir as leis.

2 - Direitos e Silêncios - Você vai ler alguns direitos femininos e colocá-los na ordem em que acredita que viraram leis (as datas ficam no verso das cartas). Atenção, spoilers: Direito ao voto? 1932. Fim da obrigatoriedade de adoção do sobrenome do marido? 1977. Casamento sem exigência de virgindade? Essa, minha amiga, só foi retirada do Código Civil em 2002!

3 - Três Esferas - Você joga bolinhas em baldes que representam as diferentes esferas públicas. Por exemplo: a bolinha do metrô deve ser arremessada na lata da esfera municipal, estadual ou federal? E a da escola pública infantil? Subtexto: a quem cobrar melhorias desse serviço.

POLÍTICA

A motivação de Júlia e de sua ONG Fast Food da Política é transformar a relação das pessoas com o tema. Ou, em uma frase de efeito: “Aprender sobre as regras do sistema político na velocidade em que se come um hambúrguer”.

“Comecei a gostar de política quando percebi como somos distantes do poder público”, diz ela. Uma percepção aguçada ao participar de projetos como Guerreiros Sem Armas e Oásis, quando começou a sair da bolha de estudante de escola particular de família de classe média alta. “Mudou tudo.”

Ela conta a experiência transformadora que teve com a comunidade da favela do Parque do Gato.

Acompanhou de perto a desapropriação da área em 2014, que deixou famílias acampadas na avenida do Estado, em São Paulo. “Era época de chuvas, muitos bebês e mães naquele dilúvio. Meses e meses e nada acontecia”, relata. “Foi impactante presenciar tiro, bomba da polícia porque elas estavam bloqueando o trânsito.”

Ficou impressionada com a força e a coragem das mulheres diante da força policial. “Elas gritavam: ‘Atira, atira’”. Também percebeu como as pessoas odeiam o governo. “Era preciso fazê-las mais donas desse processo governamental, público. A partir daí comecei a buscar a política.”

A ONG nasceu em uma viagem a bordo do Ônibus Hacker, quando ela embaraçou rumo a Brasília para acompanhar manifestações pró e contra o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2015. “Bolamos ali um primeiro jogo, o Monte Seu Governo. Era uma espécie de quebra-cabeças, que mostrava quem entraria no lugar da Dilma. Gerou muitos questionamentos.”

“Naqueles dias, se você estava de amarelo ou de vermelho, podia apanhar na rua.” No ônibus, ao conversar com aqueles que queriam o impeachment, por exemplo, percebia que muitos não se davam conta do que viria a seguir: o vice Michel Temer (MDB) “Aí, diziam: ‘Não, vamos derrubar também’. Claro que não funciona assim. Percebi ali a falta de entendimento do processo como um todo.”


Gustavo Alencar, coordenador do Lab Hacker, viu a Fast Food nascer neste ambiente de polarização política. “Júlia teve essa sacada de fazer jogos rápidos, compreensíveis e que educassem. Abriu os códigos da política, inaugurando um diálogo de forma divertida, que pode ocorrer num almoço de domingo, com a família, ou  no meio de uma manifestação.”

O também hacker elogia a promoção de um diálogo mais qualificado. “A Fast Food hoje me constrói politicamente. Fui hackeado!”

ARQUITETURA E FAVELA

Graduada pelo Istituto Europeo di Design, Júlia achava que ia ser arquiteta, “pois tinha na cabeça que a arquitetura ia resolver o mundo. Acreditava que se a gente pudesse redesenhar a cidade e as pessoas pudessem usar mais as ruas, a relação entre elas seria diferente. Não é tão simples”.

Desistiu depois de trabalhos voluntários em ONGs como a Teto, onde ajudou a construir casas emergenciais em favelas. “Percebi que era paliativo, muita energia gasta em algo que não traz resultados concretos nem garante que não vá acontecer de novo. E vem daí minha preocupação em construir um caminho.”

Vislumbrou um atalho ao participar do Oásis Sampa, espécie de jogo de tabuleiro da vida real, promovido pelo Instituto Elos. “É um processo muito legal que dialoga com política pública e fui entendendo o quanto isso é importante.”

Depois, ela literalmente se jogou: “Para me formar, quis fazer um jogo sobre mobilização social. Mas o professor disse: ‘Designer gráfico não cria metodologias’. Mas eu enchi tanto o saco que ele deixou”.

Fã da série “Designated Survivor” (aqui, na Netflix), que mostra um político de terceiro escalão alçado à presidência dos EUA, Júlia nunca foi chegada em jogos quando era mais nova. Seus pais, ele descendente de portugueses, ela de suecos, também não entenderam de cara onde essa menina estava se metendo. “Quando você vai começar a ganhar dinheiro?”, a eterna cobrança familiar.

“Começamos a ganhar prêmios e ficou mais fácil”, diverte-se Júlia, referindo-se ao primeiro lugar na categoria educação no Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social no ano passado. 

Atualmente ela tem lido bastante sobre teoria de jogos e pensado sobre a situação da masculinidade.

“Estamos olhando bastante para a questão da violência contra a mulher. E o homem, quais são os papéis que ele ocupa e quais talvez deveria desocupar? Isso merece um outro jogo...”

Júlia tem recebido mais convites para demonstrar seus jogos do que é capaz de aceitar. São ONGs, prefeituras, a USP, escolas. “Quando abrimos os tabuleiros na rua, chama atenção demais. O pessoal acha incrível descobrir um jogo que trate desses assuntos.“

Está escrevendo o TCC da pós-graduação sobre como fazer política pública com gameficação. Tema que a faz ter gosto pelos estudos. “No ensino médio, eu era a revoltada sem causa. Não via sentido na escola. Conteudista, rígida e superficial.”

Depois da Fast Food, uma degustação rápida da política, Júlia aposta na Slow Food da Política, formação cívica mais aprofundada e também lúdica voltada para estudantes e desenhada por uma hoje rebelde com causa.

 

Fast Food da Política 

Fundação
2015

Área de atuação 
Formação para cidadania e democracia

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