Educação

O que muda com a decisão do STF sobre a linguagem neutra

A lei de Rondônia que proibia o ensino da variante linguística se tornou inconstitucional; saiba como ficam as outras 45 legislações semelhantes no Brasil

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABR
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O Supremo Tribunal Federal decidiu que é inconstitucional os estados determinarem se as escolas devem utilizar ou não a linguagem neutra em sala de aula. De acordo com a Corte, é atribuição da União, ou seja, do Ministério da Educação, tratar do tema.

O julgamento no tribunal veio a partir de uma ação direta de inconstitucionalidade, movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), especificamente sobre o estado de Rondônia. No entanto, outras 20 unidades da federação contam com legislações semelhantes. 

Um levantamento da Universidade Federal de São Carlos mostrou que, de janeiro de 2020 a fevereiro de 2022, o Brasil contava com 45 projetos de lei em tramitação ou aprovados que propunham a proibição da linguagem inclusiva nas escolas. 

Juristas ouvidos por CartaCapital dizem que, apesar da inconstitucionalidade posta pelo STF em todo o território nacional, as leis não caem em desuso automaticamente

“O entendimento do STF vale para essas outras leis, mas elas continuam valendo até que a Corte declare que são inconstitucionais em ações próprias ou até que os legislativos locais as revoguem”, afirma Wallace Corbo, doutor em Direito Público e professor de Direito Constitucional na Fundação Getúlio Vargas (FGV). 

A recomendação é que parlamentares não legislem sobre o tema, de acordo com Salomão Ximenes, professor de Direito e Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC). “É recomendável que não se aprove, embora formalmente não há proibição”, diz. “Eu entendo que haveria má fé de se tramitar um projeto de lei sabidamente inconstitucional”.

Para o professor, caso alguma proposta contrária a decisão do STF seja apresentada por algum parlamentar, é necessário que Comissão de Constituição e Justiça da Casa Legislativa barre a tramitação. “[Mas] Caso a lei seja sancionada pelo governador, que também deveria evitar com base na inconstitucionalidade, no dia seguinte o Ministério Público vai questionar”. 

Após a determinação do STF, a Contee acionará novamente a Corte para que a decisão passe a valer imediatamente em todo o País.

“Essa vai ser a nossa posição, estamos somente esperando a publicação do acórdão para entrar com agravo requerendo a expansão e ampliação da aplicação”, declarou à reportagem Gilson Reis, coordenador-geral da Confederação.

Quem propõe?

A oposição ao ensino da linguagem inclusiva teve um salto no mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro. De 2020 para 2021, as proposições saltaram de 13 para 29.

O estudo da UFSCar também mostrou que, em todos os estados com projetos de lei para a proibição, a iniciativa partiu de parlamentares de extrema-direita, direita e centro-direita.

Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina têm, cada um, cinco proposições. Os principais partidos envolvidos são o antigo PSL, o Republicanos e o PTB.

Recentemente, duas capitais – Manaus e Porto Alegre -e quatro estados – Paraná, Rondônia, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul – proibiram o uso da linguagem neutra nas escolas.

Em Manaus, a lei foi promulgada em abril de 2022 pelo prefeito David Almeida (Avante). O projeto do vereador Raiff Matos (Democracia Cristã) proibiu o uso da linguagem na grade curricular, material didático de escolas públicas, privadas e em documentos oficiais de repartições públicas.

Além disso, previu punição aos professores e as instituições que utilizarem a linguagem inclusiva, como a suspensão do alvará de funcionamento do estabelecimento em caso de escolas particulares e, nas escolas públicas, a responsabilização individual do servidor.

Na capital gaúcha, o PL da vereadora Comandante Nádia (PP) foi sancionada em junho do ano passado pelo prefeito Sebastião Melo (MDB). 

A nível federal, mesmo após a determinação do STF, parlamentares tentam levar ao Congresso Nacional a proibição do ensino da linguagem neutra. É o caso do deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP) que, no último sábado 18, apresentou um projeto para alterar a Lei de Diretrizes e Bases na Educação (LDB) e conseguir barrar completamente o uso da linguagem. 

‘Judicialização reacionária’

Ximenes avalia que o movimento contra a linguagem neutra ou inclusiva simboliza o que chama de “judicialização reacionária da educação”.

“É uma estratégia específica de grupos ultraconservadores”, afirma “Eles estão organizados em torno dessa atuação há alguns anos no Brasil”.

Um exemplo é o Escola Sem Partido, que incentiva uma agenda conservadora para a educação brasileira desde 2004 e ganhou força a partir de 2015.  Apesar do argumento ser o de tirar “ideologias políticas” do ambiente escolar, as propostas de lei do projeto pedem que “valores familiares” tenham “precedência sobre a educação escolar”, como o PL 7180/14 do ex-deputado Erivelton Santana (PSC/BA), que tentou alterar o artigo 3º da LDB.

A pauta mais conhecida do movimento diz respeito às proibições da palavra “gênero” e da educação sexual nas escolas.

“A judicialização reacionária se utiliza de mecanismos legais para tentar barrar avanços conquistados na política educacional e também nas práticas pedagógicas”, acrescenta Ximenes. “Ela tem um propósito que é de fato anunciado, que é esse de suspender as leis, de proibir, mas tem outro propósito que é mais perigoso: a gente chama de efeito inibidor, que é provocar mediante essa judicialização permanente a inibição das condutas”. 

Esse efeito serviu de base para a criação e aprovação da legislação de Porto Alegre, por exemplo. O caso partiu da denúncia de uma mãe de estudante que discordou do uso do “Queridxs alunxs” em uma atividade escolar. Por conta disso, a instituição de ensino recebeu uma notificação extrajudicial.

“É importante a gente refletir sobre o que está por trás de toda essa resistência relacionada ao debate da linguagem neutra”, diz Tânia Dornellas, assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. “[A mudança] vai acontecer, não tem como controlar a linguagem. No momento, ninguém está discutindo mudanças gramaticais”. 

Para Tânia, a linguagem neutra é uma ferramenta de representatividade das pessoas não binárias [que não se identificam com gêneros masculino ou feminino]. 

A decisão do STF, segundo o professor Wallace Corbo, é mais um movimento da Corte como agente de defesa de direitos de minorias sexuais e de gênero. “No fim do dia essa nova decisão se soma a uma jurisprudência do Supremo que tem sido muito sólida, muito constante, no sentido de sempre proteger esses grupos e de evitar a discriminação”. 

O Supremo já julgou pautas sobre o direito de pessoas trans ao nome e ao gênero. “[É a ação] de fomentar uma sociedade em que pessoas LGBTQIAP+ possam estar incluídas e respeitadas”, complementa. 

A posição do MEC

O entendimento no MEC é de que deve-se respeitar as determinações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Ambas não citam diretamente a “linguagem neutra”, mas preveem o estudo “das formas contemporâneas de linguagem”.

“Não se trata de ‘ensinar’ ou ‘não ensinar’ a linguagem neutra”, explicou a Secretária de Educação Básica do MEC, professora Kátia Schweickardt, a CartaCapital. Trata-se de seguir as diretrizes estabelecidas na BNCC e tomar a língua como um objeto de estudo e reflexão, nas suas diferentes manifestações”. 

Para Tânia, a posição vai ao encontro dos marcos legais internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional Sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

“Todos são marcos que precisam ser considerados, porque eles trazem em seu escopo questões relacionadas à linguística a partir da questão da dignidade humana”, explica. “A própria Declaração Universal de Direitos Humanos eleva os direitos linguísticos ao mesmo patamar dos Direitos Humanos”. 

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