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Por e — Rio de Janeiro

Pela primeira vez, a Lei de Cotas, que antes reservava vagas para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência nas universidades, inclui quilombolas. A política afirmativa entrou em vigor no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) deste ano e permitiu o ingresso de mais de dois mil estudantes remanescentes de quilombos.

Para Adilson Pereira dos Santos, pró-reitor de graduação e integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal de Ouro Preto, a criação de uma categoria específica para essa parcela da população era necessária para uma inclusão mais efetiva nas universidades, porque somente a cota racial não os abarcava.

— A imagem da pessoa quilombola estava associado a aspectos pejorativos. Por isso, ela não tinha essa disposição de se assumir como tal. Para além do benefício direto do indivíduo, outras tantas comunidades poderão se assumir quilombola com base na garantia desse direito — explica.

Para se enquadrar na vaga, os candidatos precisaram preencher uma autodeclaração de pertencimento étnico, com a assinatura de três lideranças da comunidade, além de apresentar uma certidão da Fundação Cultural Palmares com o reconhecimento oficial do quilombo.

Os cursos com maior número de aprovados foram Administração (93), Direito (92) e Medicina (92), que estão entre as graduações mais concorridas do país nas instituições públicas. As universidades da Bahia — estado com maior quantidade de localidades quilombolas — são as que têm o número mais elevado de cotistas, com 315 estudantes.

— As comunidades quilombolas, como os povos indígenas, têm uma relação muito orgânica entre seus indivíduos. Muitos vão buscar o ensino superior não por benefício particular, mas coletivo. Uma pessoa vai fazer Medicina e passará a olhar as doenças daquela comunidade com olhar específico, diferente de alguém sem vinculação com aquelas comunidades — afirma dos Santos.

O GLOBO reuniu histórias de jovens quilombolas aprovados no Sisu. Os relatos de Hiago Herédia, de 28 anos, aprovado em Medicina; Chayenni Braga, de 24, aluna do curso de Engenharia Elétrica; Joanny Xavier, de 19, futura advogada; e Lucas Santos Jordão, de 19, calouro de Administração, carregam uma luta ancestral por direitos.

Hiago Herédia, de 28 anos

“Passar em Medicina era o meu sonho desde 2012, quando me formei no ensino médio. Por ser um curso muito concorrido, não consegui. Minha nota dava apenas para Fisioterapia com bolsa pelo Prouni e decidi arriscar. Me apaixonei pela área, mas continuei fazendo o Enem acreditando que um dia conseguiria. Agora é real: daqui alguns anos serei o primeiro médico do Quilombo Arturos (MG).

Quando criança, queria ser paleontólogo, mas cresci vendo meus avós benzendo as pessoas para ajudá-las espiritualmente e decidi que também queria cuidar delas, mas focando na saúde do corpo. Ainda na faculdade de Fisioterapia, comecei a atender voluntariamente no quilombo e ajudei no enfrentamento à Covid-19. Perdi meus avós e uma tia e sabia que, como médico, poderia fazer muito mais.

Só entendi mesmo o que era ser quilombola já na primeira faculdade, que era privada. Com muitas pessoas ricas, eu contava moedas para tomar café. Concluí o curso graças à ajuda da comunidade. Morar num quilombo é sofrer junto, se alegrar junto, é tudo muito coletivo, porque todo mundo descende do mesmo ancestral. Por isso, vou me especializar em Saúde da Família.

Como só consegui vaga na UFBA, o quilombo vai me ajudar financeiramente a me mudar para Salvador. Sinto que vou ser muito feliz, especialmente por ter um coletivo quilombola na universidade. Mas minha meta é voltar para casa e continuar o legado do meu povo.”

Nascido no Quilombo Arturos (MG), Hiago Herédia, de 28 anos — Foto: Arquivo
Nascido no Quilombo Arturos (MG), Hiago Herédia, de 28 anos — Foto: Arquivo

Chayenni Braga, de 24 anos

“Sou do Quilombo Mesquita, em Cidade Ocidental (GO). Meu avô conta que a nossa família foi uma das primeiras a chegar na comunidade, há 280 anos, e ele foi um dos quilombolas que na década de 1960 ajudou a construir Brasília. Mas aqui nem sempre as oportunidades chegaram. Minha mãe foi a primeira a fazer faculdade. Se formou professora pegando três ônibus para assistir às aulas comigo nos braços. Sou a primeira a ingressar em uma faculdade pública.

Eu era criança, mas ainda lembro de quando a Fundação Palmares nos reconheceu como uma comunidade remanescente de quilombo, em 2006. As pessoas começaram a entender o que era ser quilombola e se engajar ainda mais na busca por direitos, inclusive na educação. Isso fez com que eu estudasse em uma boa escola na infância. Mas no ensino médio comecei a ver as nossas dificuldades mais de perto, porque tinha que percorrer 30 km para estudar.

Aqui temos muitos jovens que enxergam no Enem uma mudança de vida. Me ajudaram a conseguir bolsa no Prouni em 2019 para estudar Veterinária. Ano passado fiz a prova para incentivar o meu irmão, de 16 anos, e digo que a Engenharia me escolheu. Optei pela elétrica porque meu marido é da área e poderá me ajudar. É uma profissão com pouca representatividade feminina e acredito que ainda menos quilombola.

Olhando para as minhas origens, ocupar esse lugar significa representar todos que vieram antes de mim e não desistiram.”

Nascida no Quilombo Mesquita, em Goiás, Chayenni Braga, de 24 anos — Foto: Arquivo
Nascida no Quilombo Mesquita, em Goiás, Chayenni Braga, de 24 anos — Foto: Arquivo

Joanny Xavier, de 19 anos

“Nasci no Quilombo Jussatuba (MA), mas só passei a me entender enquanto uma mulher negra e quilombola aos 16 nos, no ensino médio, quando tive acesso ao debate racial. A dificuldade financeira e de transporte para ir à escola também me fez compreender o quanto eu precisava saber sobre os meus direitos para ajudar a mudar essa realidade. Fui aprovada nos cursos de Serviço Social e Direito, e escolhi a segunda opção porque quero fazer concurso público.

Moro com a minha mãe e a minha avó, que choraram comigo quando saiu o resultado do Sisu. Ano passado eu havia sido aprovada em Serviço Social, mas estava com a identidade fora da validade e não consegui fazer a matrícula.

Nascida no quilombo Jussatuba (MA), Joanny Xavier, de 19 anos — Foto: Arquivo
Nascida no quilombo Jussatuba (MA), Joanny Xavier, de 19 anos — Foto: Arquivo

Lucas Jordão, de 19 anos

“Fiquei muito feliz quando vi nas inscrições no Sisu que havia cotas para quilombolas. Me deu esperança saber que eu teria mais chances de ser aprovado em Administração, que é bastante concorrido na UFAL. Essa política afirmativa ajudou não apenas a mim, o primeiro da família a entrar na faculdade, mas a outros quilombolas, que muitas vezes são excluídos por racismo.

Aqui no Quilombo Oiteiro, em Penedo (AL), onde moro, a minha família é uma das mais antigas. Minha mãe conta que ouvia de seus avós que foram eles que ajudaram a construir a comunidade e a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, em Maceió, carregando pedra nas costas.

Eu tive a sorte de estudar em boas escolas e consegui me preparar para o vestibular sozinho em casa. O desafio agora é conseguir meio de transporte para ir para a faculdade, que fica na cidade de Arapiraca. Minha mãe está tentando articular com a prefeitura a disponibilização de mais ônibus para os estudantes porque aqui só passa de manhã e à noite. Ainda temos alguns meses até o início das aulas, e espero que dê tudo certo.”

Minhas aulas começam no segundo semestre e estou muito animada, mas apreensiva com a possibilidade de não continuar trabalhando. Vou precisar percorrer 60 km todos os dias, para ir e voltar a São Luís (MA), enfrentar falta de ônibus e de dinheiro. Mas me inspiro na minha prima, que conseguiu uma graduação pública, e me agarro na possibilidade de ser contemplada com uma bolsa permanência.”

Nascido no quilombo Outeiro, em Alagoas, Lucas Santos Jordão, de 19 anos — Foto: Arquivo
Nascido no quilombo Outeiro, em Alagoas, Lucas Santos Jordão, de 19 anos — Foto: Arquivo
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