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O que falta para que as políticas de promoção do uso de tecnologias na educação funcionem?

A crise sanitária revela que não basta adotar modelos privados de EAD, é urgente repensar as políticas de educação

Foto: Agência Brasil
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Por Jamila Venturini*


Não foram a pandemia da covid-19 e a interrupção das aulas presenciais que introduziram no âmbito da educação a demanda pelo uso de tecnologias da informação e comunicação (TIC). Propostas sobre como elas poderiam potencializar o aprendizado e contribuir com a melhoria dos sistemas educacionais datam de mais de 50 anos e acompanharam o próprio desenvolvimento da computação e Internet.

Na América Latina, as primeiras experiências com o uso de TIC na educação se iniciaram nas décadas de 70 e 80, principalmente com o ensino de programação para crianças por meio de uma linguagem inspirada no construtivismo, o Logo. Em 1973 já havia registros de experiências com computadores no ensino superior em universidades do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. No âmbito nacional seriam implementados dois programas no Ministério da Educação (MEC) ainda na década de 80 buscando formar professores, promover o desenvolvimento de software educacional nacional e estimular o uso das novas tecnologias na educação básica e superior.

Nos anos 90 viria o Programa Nacional de Informática na Educação (ProInfo) com o objetivo de “disseminar o uso pedagógico das tecnologias de informática e telecomunicações nas escolas públicas de ensino fundamental e médio pertencentes às redes estadual e municipal”. Desde então, ele foi reformulado e complementado por uma série de outras iniciativas nacionais e locais, inclusive voltadas à oferta de conectividade a escolas rurais e urbanas e à distribuição de equipamentos para docentes e estudantes.

Se não faltaram políticas buscando promover a inclusão digital e o desenvolvimento de habilidades entre docentes e estudantes, a atual crise sanitária escancarou o fato de que elas não foram suficientes para reduzir brechas e facilitar a interação remota num contexto de emergência.

Dados da pesquisa TIC Educação, realizada anualmente pelo Cetic.br e cuja última edição foi lançada este mês, indicam que grande parte das escolas sofre com uma infraestrutura precária. Entre as escolas rurais, apenas 40% possuem ao menos um computador conectado à Internet. Nas urbanas, ainda que quase a totalidade das escolas afirmem dispor de computadores e conexão à Internet, os desafios para seu uso nos processos de ensino-aprendizado são muitos.

Segundo a grande maioria das professoras, o número insuficiente de máquinas nas escolas, equipamentos ultrapassados, baixa velocidade das conexões, ausência de suporte técnico e de capacitação específica continuaram dificultando o uso pedagógico das tecnologias em 2019. De fato, somente 25% das escolas afirmaram possuir projetos de formação para professores atualmente, entre as públicas, são apenas 23%.

Outra informação relevante é que apenas 14% das escolas públicas dispunham de um ambiente ou plataforma virtual de aprendizagem, enquanto na rede particular o índice era de 64%. O recurso é fundamental para facilitar a interação remota entre docentes e estudantes, o compartilhamento de conteúdos e o desenvolvimento de atividades e se tornou central no contexto da pandemia da covid-19. A falta de investimentos prévios nesse tipo de ferramenta explica a corrida das secretarias estaduais e municipais em estabelecer parcerias com grandes fornecedores comerciais de soluções educativas nos últimos meses.

Os dados indicam que a opção por uma política pública de conectividade que em grande medida depende do setor privado compromete a redução das brechas digitais. A lógica comercial de operação do setor de telecomunicações termina por excluir regiões mais vulneráveis e se concentra em camadas da população economicamente favorecidas, moradoras dos grandes centros urbanos, o que contribui com o aumento das desigualdades. O modelo 1:1, baseado na distribuição de dispositivos individuais para estudantes e docentes e na oferta de conectividade para as escolas, tem apelo midiático, mas também mostra limitações em cumprir com seus objetivos.

Desigualdades estruturais na sala de aula

Não há fórmula mágica. As tecnologias por si só são incapazes de promover transformações nos processos de ensino-aprendizagem e políticas públicas que respondam a demandas da moda ou pressões empresariais se mostram limitadas para garantir melhorias no sistema público de educação, como defendiam pioneiras e pioneiros na promoção do uso educacional das TIC no Brasil.

A realidade em sala de aula é complexa e suas maiores conhecedoras são as professoras e os professores que, mesmo em precárias condições, recorrem constantemente às tecnologias para aprimorar suas práticas de ensino e gerar interesse entre os estudantes. Os dados da TIC & Educação de 2019 novamente comprovam que na ausência de uma infraestrutura adequada, elas assumem a responsabilidade de promover um ensino de melhor qualidade, ainda que tenham que levar seu próprio computador à escola ou utilizar suas redes sociais pessoais para tirar dúvidas ou disponibilizar conteúdos extra a seus estudantes. E mesmo na falta de capacitação adequada, mais 80% utilizou a Internet para desenvolver ou aprimorar seus conhecimentos sobre como usar as TIC nos processos de ensino e aprendizagem.

No contexto da pandemia da covid-19, as autoridades públicas novamente recorrem às pressas a empresas e soluções improvisadas para garantir a continuidade do calendário letivo como se pouco importasse o contexto. Elas desconhecem o que é estar em sala de aula e ainda mais a realidade das crianças e jovens atendidas pelo sistema público. São crianças e jovens que acessam a Internet apenas pelo celular (e que somam 21% na rede pública e chegam a 26% de todos os estudantes do Nordeste do país), que dependem da merenda escolar para ter uma alimentação de qualidade e que vivem sob o constante risco de serem assassinadas cruelmente pela polícia em seu horário de lazer. Realidade que desde o início da pandemia estampa os jornais e choca o “Brazil” que até hoje não conhece o Brasil, para lembrar o saudoso Aldir Blanc.

Novamente cabe às e aos profissionais usar seus próprios recursos para dar conta da imposição atropelada de um improvisado projeto de educação à distância e oferecer apoio dos mais variados tipos diante da situação de emergência que enfrentamos, como destacou a professora Carla Carvalho, professora de Educação Infantil e Ensino Fundamental I da rede municipal de São Paulo durante o debate Educação, Internet e Pandemia [ promovido pelo Intervozes. Isso sem falar nas necessidades próprias de se adaptar às novas condições de trabalho remoto, seus desafios e ferramentas adotadas de forma unilateral. Carla também trouxe uma pergunta central à discussão: “qual a concepção política que permeia essas soluções?” e lembrou do papel docente na superação de uma visão conteudista da educação que parece que retornar com força no contexto atual.

É enorme o potencial no uso das tecnologias para fomentar novas relações na construção do conhecimento, assim como é mais do que nunca fundamental a criação de capacidades entre as novas gerações sobre como lidar criticamente com as informações que circulam online, algo que reconhecem inclusive especialistas internacionais de direitos humanos. No entanto, é cada dia mais evidente que não podemos nos dar ao luxo de seguir gastando milhões dos cofres públicos apenas para os aplausos daquele Brazil que não merece o Brasil. É chegada a hora de as discussões sobre o uso das TIC na educação serem ampliadas e a voz da comunidade escolar ouvida na formulação de políticas sobre o tema a partir de uma perspectiva que efetivamente coloque os direitos à educação e à comunicação como centrais.


*Jamila Venturini é jornalista, mestranda em Ciências Sociais com foco em Educação pela FLACSO Argentina e membro do Coletivo Intervozes. Atualmente é coordenadora regional na Derechos Digitales, organização que atua há 15 anos pela proteção e defesa dos direitos humanos nos ambientes digitais.

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