O que é ser professor ou estudante no ensino médio noturno - PORVIR
Crédito: Martin Barraud/iStock

Inovações em Educação

O que é ser professor ou estudante no ensino médio noturno

Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, educadores e estudantes conversaram com o Porvir sobre dificuldades e possibilidades para o período noturno com o Novo Ensino Médio

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 16 de março de 2022

Pedalar quase seis horas por dia para poder estudar. Essa foi a maratona enfrentada por David Guilherme Sarmento da Silva, de 16 anos, entre 2020 e 2021. Durante a pandemia, o jovem morador de Santa Etelvina, bairro da Zona Norte de Manaus (AM), permaneceu afastado da oficina mecânica que supervisiona, mas dedicou-se às aulas online. Como não tinha celular ou computador, saía de casa às 10h e, por volta das 13h, parava a bicicleta na portaria do prédio de um amigo, para que pudessem, juntos, acessar os materiais da escola pelo notebook.

“Confesso que não consegui aprender muito, não”, diz David, que completou 8º e 9º anos por meio da EJA (Educação de Jovens e Adultos) no período de isolamento social. Pensou várias vezes em desistir. Mas com o apoio da mãe, da companheira e com o nascimento do filho Paulo Henrique, hoje com 7 meses, entendeu que seguir nos estudos seria o melhor caminho. Decidiu se matricular no primeiro ano do ensino médio noturno regular e enfrentar as jornadas de trabalho na oficina, nos cuidados com o pequeno Paulo Henrique e nas classes presenciais.

Agora em 2022, logo nos primeiros dias de aula, David fez uma redação para a disciplina Projeto de Vida. Aluno da Escola Estadual Professor Octávio Mourão, localizada a apenas 5 minutos a pé de sua casa, David colocou no papel um de seus sonhos: quer se especializar em enfermagem do trabalho, curso técnico que já realiza aos sábados pela manhã no centro de Manaus. Dessa vez, o trajeto é de ônibus.

“A professora gostou da minha redação, acho até que se emocionou. Nesse ano, o contato mais próximo com professores tem me animado”, conta. “Vamos escolher os itinerários formativos, isso parece legal. Eu me interesso muito por estatística e matemática, sou bom de conta e desenrolado, sabe? Acho, também, que ter disciplinas como biologia e química vai ajudar para que eu siga na enfermagem”, acredita David. “Preciso deixar o cansaço e o desânimo de lado para pensar em um emprego com carteira assinada e no futuro do meu filho.”

Especialistas na primeira reportagem desta série apontam que Projeto de Vida e Itinerários Formativos são algumas das estratégias para aproximar a escola e o aluno do ensino médio noturno. Há, porém, outras camadas a serem desveladas. E muitos obstáculos a serem ultrapassados.

Caminhos para a transformação
A questão da dupla jornada (estudar e trabalhar), realidade para alunos como David, não se aplica para todos os estudantes do ensino médio noturno. “A opção por estudar à noite pode ocorrer por outros aspectos. Há pesquisas feitas nos estados, seja pelas próprias redes, ou por outras instituições, mostrando que uma parte significativa dos estudantes não precisaria estar no ensino noturno porque não tem essa dupla jornada”, explica Katia Smole, diretora do Instituto Reúna. Ela relembra uma pesquisa Instituto Unibanco: em 2016, 40% dos estudantes matriculados no período da noite não trabalhavam.

O dado, porém, não quer dizer que o ensino noturno deva desaparecer, diz a especialista, ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação. “Ainda precisamos saber mais a respeito, e é urgente sair do senso comum de que só estuda no noturno quem tem dupla jornada.” Katia reafirma a importância de organizações, governamentais ou não, investigarem com mais profundidade os motivos que levam os estudantes para o período da noite.

“Falta de vagas no diurno? Pouca atratividade do ensino médio e daí estudar em um turno com menor carga horária se mostra menos desgastante? A esperança de encontrar um trabalho? Não puderam estudar no diurno na idade certa e então optam por estar no noturno já mais velhos? O índice de reprovação no diurno faz com que optem pelo noturno?”, questiona. “Encontrar evidências auxilia a pensar soluções que atendam quem precisa estudar neste turno para ofertar ensino médio de qualidade com equidade.”

O ensino médio noturno é um fenômeno mais concentrado nas regiões urbanas brasileiras. De acordo com o novo Censo Escolar, 83,3% dos alunos do ensino médio estudam no turno diurno e 16,7% no período noturno. A procura vem caindo durante os anos e, em algumas regiões, faltam escolas nas regiões rurais, conforme relatado em recente reportagem sobre a Amazônia Legal.

“Olha, se tudo correr como esperamos, esse número (de matrículas à noite) deve cair mesmo. E tem um lado positivo nisso: a possibilidade dos estudantes se dedicarem à escola. A melhoria da aprendizagem, o ajuste do fluxo escolar, a oferta de escolas com tempo ampliado, dos itinerários formativos, incluindo o itinerário técnico profissional, devem ser fatores que trarão maior quantidade de estudantes na escola regular diurna, e como consequência, menos estudantes no ensino noturno”, diz Kátia.

Os cursos noturnos precisam, sim, continuar, mas de maneira que bem atendam a quem precisa, afirma a especialista. “O que não podemos é manter a situação atual na qual se, por um lado, o noturno cumpre a função de garantir aos estudantes mais vulneráveis o direito à educação, por outro, seu caráter mais precário contribui para reprodução das desigualdades ao oferecer um ensino menos qualificado”, aponta. “O novo modelo de ensino médio traz muitas possibilidades de virar esse jogo.”

O placar da aprendizagem no momento não é favorável. Se no ensino médio em geral, a aprendizagem está longe da adequada, no noturno só o estado de Goiás chegava a 4,39% de aprendizagem adequada em matemática, mostra levantamento do Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional). O restante do país ficava em torno de 1%. Em língua portuguesa, Goiás também lidera o ranking, com 29,75% de aprendizagem adequada, seguido por São Paulo (28,5%) e Paraná (27,19%). Confira a tabela ao final da matéria.

Unidades complementares
Kauã Dourado Rodrigues Pedroso, de 17 anos, e Thaís Bonfim Cecilio, de 16, são colegas de classe na Escola Estadual Professor Miguel Oliva Feitosa, em Perus (distrito da zona noroeste de São Paulo). Ele, estagiário por seis horas; ela, em busca do primeiro emprego. Partindo do currículo do Novo Ensino Médio, a escola oferece como aprofundamentos duas unidades complementares: Tradições e Heranças Culturais e Água e Energia – Estatísticas na saúde pública. “Ambas ajudam a melhorar os conhecimentos”, diz Kauã. “Elas permitem que a gente enxergue melhor o lugar onde mora, por diferentes prismas da mesma cidade”, conta Thaís.

A rede, composta por 1.616 escolas com turmas de ensino médio noturno e um total de 323.988 matrículas (considerando as três séries), mantém o site Novo Ensino Médio, no qual compartilha documentos orientadores e uma seção de perguntas e respostas para esclarecer dúvidas. E registrou, de acordo com o Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), que alunos que concluíram o ensino médio em 2021 (em todos os turnos) saem com defasagem de aprendizado de quase seis anos. “Não há dúvidas de que defasagem é um problema generalizado no ensino médio”, reforça Katia Smole.

Diretor-fundador do Iede, Ernesto Faria ressalta que o ensino noturno precisaria dar muito mais suporte aos estudantes, garantindo boas condições para a aprendizagem. “Quando olhamos para o ensino médio matutino, que engloba as escolas integrais, vemos um perfil socioeconômico muito melhor. Isso é um dado que deveria gerar reflexão entre os gestores públicos”, sugere.

“Sabemos, por exemplo, que a escolha pelo ensino noturno, muitas vezes, é dos próprios alunos por causa do trabalho etc. Mas quando vemos escolas públicas integrais que fazem vestibulinho para aceite de alunos, acabando por matricular aqueles menos vulneráveis, isso nos deveria fazer pensar: Quem precisa mais dessas escolas? Qual o critério de seleção? Como atingir os mais vulneráveis? O quanto políticas de renda e educação precisam andar juntas? São perguntas que precisam ser feitas quando o ensino integral não pode ser para todos por motivos orçamentários”, detalha o pesquisador.

Leitura do mundo
Para o professor Wagner Rodrigues da Silva, professor de matemática da rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul há 18 anos, o principal desafio do noturno, somado às questões citadas por Ernesto Faria, é entender a realidade desses alunos e a distorção idade-série. E tentar mantê-los motivados, com aulas dinâmicas e diferenciadas, para que não desistam.

“Os objetos do conhecimento e conteúdos conceituais até podem ser os mesmos, mas contextualizações geralmente são diferentes das que fazemos com os alunos do diurno. Os alunos do noturno muitas vezes já trazem consigo outras experiências, como a inserção no mercado de trabalho ou a constituição familiar, às vezes históricos de múltiplas reprovações no diurno. São muitas experiências já vivenciadas, e isso possibilita o enriquecimento das aulas”, conta o professor, atualmente assessor técnico da Secretaria Estadual de Educação.

Formada em física, Mônica Ribeiro da Silva, da Escola Estadual Santo Antônio de Abaré (no município de Abaré, BA), leciona física e química nos três anos do ensino médio noturno. Concorda com Wagner quando o assunto é dinamismo ao ensinar. “Os estudantes sempre estão muito cansados, muitos dormem nas últimas aulas. É uma luta diária, viu?”, lamenta-se. “Mas as aulas expositivas e o colocar a mão na massa corre muito bem nesse turno”, comenta.

Mônica não esconde o orgulho ao comentar sobre seus alunos que conseguiram concluir os três anos, como fez Eloisa Gabriel Silva, hoje estudante do 4º período de pedagogia a distância da Unopar (Universidade Norte do Paraná). Graças ao bom desempenho no Enem, (Exame Nacional do Ensino Médio), ela conseguiu uma bolsa na graduação. Contudo, foram grandes as dificuldades até chegar na faculdade.

Eloisa levou sete anos para concluir os três anos do ensino médio. “Sempre fui muito falante, gostava de debater na aula. Estudei a vida toda pela manhã, sonhava em me formar em história ou jornalismo, mas as demandas da vida me levaram para o período noturno e passei por algumas desistências no meio do caminho”, reflete.

Além do cansaço acumulado do trabalho como diarista, Eloisa engravidou durante o curso. Enquanto amamentava, chegou a levar o bebê para as aulas, mas era impedida de seguir na sala de aula. “Quando a situação financeira melhorou, eu e meu marido pudemos contar com uma rede de apoio e voltamos juntos à escola”, conta ela. “Mas não são todas as mães que têm essa chance. Gostaria que as mães estudantes fossem realmente apoiadas. Estudar à noite é nossa última alternativa de escolha. Temos de ter persistência e muita, muita garra.”

Hoje, aos 24 anos, Eloisa é mãe de quatro filhos (Weverton Antônio, de 6 anos, Wendell Gabriel, de 4 anos e as gêmeas Anny Willay e Ayra Wellen, de 1 ano e 8 meses). Fã dos ensinamentos de Paulo Freire e de Maria Montessori, levou a pedagogia para dentro de casa. “Transformei o quarto das crianças em uma mini sala de aula. Tem abecedário, silabário e alguns livrinhos. E, durante a pandemia, apoiei meus meninos na alfabetização”, orgulha-se a futura professora.

Três turnos por dia
“Dar aulas ou estudar no período noturno é muito difícil. Pode perguntar para qualquer pessoa que já passou por isso, em qualquer fase da vida”, afirma Caetano Siqueira, mestre em educação pela Universidade de Stanford (EUA). “Muitos professores têm jornada dupla, é difícil encontrar quem só lecione à noite”, diz.

Jevaldo da Silva é um dos educadores que têm essa rotina dividida. Professor de geografia do estudante David, cuja história abriu esta reportagem, Jevaldo trabalha pela manhã em uma escola municipal e, no período da tarde e da noite, na Escola Estadual Professor Octávio Mourão. E ainda precisará arranjar tempo para estudar: ele acaba de passar no doutorado em geografia pela UFAM (Universidade Federal do Amazonas).

“Certa vez, em uma aula noturna, fiquei surpreso quando levei uma turma à biblioteca. Um dos alunos me disse que era a primeira vez que entrava ali. Acho que cabe a cada um de nós, professores, criar esse hábito, fazer diferente”, ressalta. “Precisamos oferecer atividades pensadas para apoiar o aluno da noite, para que eles possam participar de verdade e se sentir pertencentes à escola. A partir do momento em que conseguimos fazer atividades integradas às diferentes componentes curriculares, atraímos a atenção do aluno, que se torna ainda mais interessado, mesmo com todas suas questões do dia a dia.”

Nesse sentido, a despeito de ainda não haver muita clareza em relação à implementação, os caminhos do Novo Ensino Médio são positivos para o planejamento de Jevaldo. Na chamada flexibilização do currículo, o ensino de geografia, por exemplo, passa a ser incluso em ciências humanas, de acordo com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular). “Mas já estamos planejando aulas ligadas a Projeto de Vida e projetos integradores com outras disciplinas, a fim de sugerir propostas de acordo com as necessidades dos alunos”, diz. “Queremos mais inserção dos nossos estudantes em atividades diferenciadas, como visitas a espaços públicos, organização de feiras, participação em atividades literárias”, ressalta.

Nem todos os estudantes, como David, moram perto da escola. “Governo e prefeitura fizeram uma parceria e estão concedendo aos alunos o passe livre no transporte. Esperamos que, com essa medida, possamos ter menos evasão”, acredita Jevaldo. Sem medo de arregaçar as mangas tanto no ensino quanto na aprendizagem, o professor e futuro doutor em geografia se intitula como um “combatente social”. Não é à toa.



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