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Rodrigo Ratier

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que as escolas privadas da periferia contam sobre desigualdade em SP

Capa do livro "As Escolas Privadas da Periferia - uma análise decolonial" - Divulgação
Capa do livro "As Escolas Privadas da Periferia - uma análise decolonial" Imagem: Divulgação

24/01/2022 06h00

Mulher, negra, filha de migrantes baianos, Adriana Dantas nasceu e foi criada em Ermelino Matarazzo, distrito na Zona Leste de São Paulo. Da adolescência na periferia, guarda a lembrança de um desejo não realizado. "Eu queria muito entrar no Colégio Cruzeiro do Sul, que ficava no bairro vizinho de São Miguel. Como sempre fui nerd, meu sonho era estudar em escola particular."

A vida teve outro rumo. Do Infantil à pós-graduação, Adriana cursou exclusivamente instituições públicas. Atualmente, realiza pesquisa de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O interesse pela escola privada, porém, reapareceu em sua vida adulta - dessa vez, ressignificado, na forma de tema para investigação.

"Eu queria entender qual o papel dos colégios particulares na Zona Leste", explica. Segundo Adriana, há um entendimento estereotipado de que bairros carentes e afastados do centro não teriam espaço para esse tipo de instituição. O livro As Escolas Privadas da Periferia - uma análise decolonial (Ed. Intermeios) mostram o contrário. Adaptada da tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação da USP, a obra reconstitui a história da rede particular na ZL paulistana. E indica que as primeiras instituições desse tipo aparecem na região já no início do século 20. Os colégios Santa Catarina, na Moóca, de 1918, o São Francisco de Assis, de 1926, no Tatuapé, e o São Vicente de Paulo, também fundado em 1926, seguem na ativa até hoje."Talvez São Paulo não conheça essa história, mas quem nasceu na região sabe que é assim", diz ela.

A primeira leva de escolas era de caráter confessional, mantida por grupos religiosos, e visava atender aos filhos dos imigrantes italianos que chegaram com a industrialização. A pesquisadora entrevistou descendentes de estrangeiros, que afirmavam optar por instituições privadas por acreditarem que era a melhor opção disponível. A crença atravessou gerações - e impactou o próprio pensamento de Adriana enquanto era estudante: escola boa é a particular, sem indisciplina, greve e violência. A pública ficaria para quem não pode pagar para estudar.

Para Adriana, a dicotomia entre público e privado é o principal indicador de desigualdade educacional no país. "Isso vale para a sociedade brasileira e para outras sociedades - um sistema dual que educa as elites para sua reprodução no poder. Mas não me parecia o suficiente para analisar a relação entre as redes na periferia. Me inquietavam os 'pontos cegos'", diz a pesquisadora. Foi aí que surgiu o caráter "decolonial" da investigação. Para Adriana, não seria possível analisar o contexto brasileiro sem considerar a questão racial.

"A escola pública paulistana só teve um boom na periferia a partir da década de 1950. Não por acaso, é quando chegam os negros nordestinos que vem para cá tentar a vida", diz. Espoliados dos direitos mais básicos no meio rural, chegam à zona urbana com privações em termos de emprego, moradia - e educação. E a escola "dos pobres" sempre foi a escola pública. "Não só pobres, mas pretos e pardos. Não dá para pensar em classe social no Brasil sem pensar em raça. Nossa base de riqueza foi construída com base no trabalho escravo".

Nem por isso a rede particular deixou de crescer na Zona Leste. Entre 1900 e 1963, a região viu a abertura de 29 colégios privados. Na Ditadura (1964-1980), outras 32. Na década de 1980 foram 40 escolas e nos anos 1990, 245. A grande expansão se deu no século 21 — a ascensão de uma nova classe trabalhadora sobretudo durante os governos de Lula e Dilma ampliou o mercado da educação particular, resultando em 815 novas instituições privadas na região.

"Há uma ideia socialmente persistente de que as escolas privadas são melhores do que as públicas. Muitas vezes isso não se verifica na prática, sobretudo na periferia, onde as instituições particulares quase nunca são 'de elite'. Mas esse entendimento segue válido. Em Ermelino Matarazzo, são muitas as trajetórias de jovens de escola pública que chegam à universidade, melhoram de vida e, havendo condições,se esforçam para matricular os filhos na rede particular", conta.

O sistema educacional "que funciona", portanto, seria um sistema feito para brancos. Antes das faculdades trazidas pela Família Real portuguesa, a elite era instruída sobretudo pela educação confessional, afirma Adriana, ressaltando que a influência das instituições privadas sobre o estado continua até hoje. "A realização da edição do ano passado do Enem, por exemplo, teve forte pressão da rede particular, que era quem de fato havia mantido o ensino por meio virtual", afirma.

Para Adriana, a superação dessa dicotomia passa por pensar a relação entre escolas públicas e privadas a partir do conflito social e racial. "A quem interessa naturalizar a escola privada como 'boa' e desvalorizar a escola pública? Aos donos de escolas particulares. É preciso evidenciar essa construção e, também, desestigmatizar o alunado da rede pública". A ZL, diz a pesquisadora, é um exemplo em que a luta de negros e nordestinos trouxe grandes transformações para São Paulo. "O Sistema Único de Saúde, por exemplo, teve sua sementinha nos movimentos de base da região. É preciso visibilizar a força dessa participação política que muitas vezes têm na escola pública um lugar fértil para germinar", finaliza.