Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

O ‘Novo’ Ensino Médio é muito pior que o anterior

Mesmo assim, engana-se quem acha que o governo Lula vai revogar a reforma sem muita pressão popular

O ministro da Educação, Camilo Santana. Foto: Luis Fortes/MEC
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Nos últimos três anos, diversas pesquisas vêm analisando os processos de implementação da reforma do Ensino Médio nas redes estaduais e desafiando os consensos fabricados pela propaganda do Novo Ensino Médio (NEM) desde 2016. No estado de São Paulo, as promessas do NEM à juventude brasileira foram sistematicamente testadas em pesquisa que analisou os dados da primeira rede de ensino do País a implementar a reforma em larga escala.

O estudo da Rede Escola Pública e Universidade evidenciou os efeitos deletérios do NEM na maior rede pública de ensino do País: aumento das desigualdades escolares dentro da rede pública, estudantes sem aulas por falta de professores, maior precarização do trabalho docente, ampliação do ensino a distância, estreitamento curricular e privatização da oferta educacional direta. A rede de ensino oficial do estado mais rico do Brasil – orgulhosa vanguarda nacional na implementação da reforma do Ensino Médio – vem descumprindo o preceito mais básico da Lei n. 13.415/2017, que a instituiu: a ampliação da carga horária no ensino médio para um mínimo de 3.000 horas letivas.

Solidamente fundamentada na literatura educacional dos últimos seis anos, a aversão à reforma do Ensino Médio é praticamente uma unanimidade entre educadores e pesquisadores da educação, como mostram as mais de 280 assinaturas de sindicatos, entidades representativas, grupos de pesquisa, associações científicas e movimentos sociais com atuação destacada na educação à Carta Aberta pela revogação da Reforma do Ensino Médio (Lei n. 13415/2017). Também no segundo semestre de 2022, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação obteve mais de 300 assinaturas de candidaturas eleitas à Carta Compromisso com o Direito à Educação nas Eleições 2022, que exigia, entre outros, o compromisso político dos signatários com a revogação do NEM.

Ainda assim, a palavra “revogação” não foi sequer mencionada nas campanhas eleitorais mais relevantes. Após a vitória da chapa Lula-Alckmin, quando o tema inevitavelmente surgiu na primeira reunião da transição de governo – notadamente por pressões do campo educacional crítico à reforma –, mencionou-se a possibilidade de “revisão e aperfeiçoamento da reforma do Ensino Médio”.

Poucos dias depois da posse do novo governo, quando o MEC divulgou nas suas redes sociais uma série de podcasts sobre o NEM produzidos pelo governo anterior, a publicação oficial estampava alguns elogios à reforma e um card com uma pergunta provocativa: “O Novo Ensino Médio pode prejudicar o estudante?”. O que se seguiu foi uma enxurrada de respostas de professores de todo o País com severas críticas à reforma. As postagens foram apagadas poucas horas depois, indicando que o MEC – cuja nova equipe é coalhada de simpatizantes do pensamento educacional de fundações e institutos empresariais – ainda não entendeu que o “consenso” em torno da reforma educacional instalada pela Lei n. 13.415/2017 só existiu na propaganda. A expectativa pela revogação, por outro lado, é bastante real.

O NEM é uma política educacional paradoxalmente centralizante e indutora de fragmentação. Promete uma revolução educacional sem precedentes, mas com investimento mínimo. Desorganiza as redes de ensino ao mesmo tempo em que bafeja veleidades de eficácia e de eficiência gestionária. Com tantas camadas de contradições, não surpreende que, entre os primeiros efeitos da reforma observados nas redes estaduais, esteja o aprofundamento das desigualdades escolares, seja entre escolas públicas e privadas, seja internamente às redes públicas.

Esta é a razão pela qual aqueles que defendiam a reforma de peito aberto até 2021 agora estejam bem mais cautelosos no entusiasmo. Em entrevista recente, um gerente da coalizão empresarial Movimento pela Base afirmou que “o novo ensino médio, bem implementado, vai gerar oportunidades e não desigualdades. Precisamos olhar para o que já foi investido, melhorar os caminhos (…) Fazer isso é mais produtivo do que voltar para trás”. Ele e outros defensores da reforma vinculados ao filantrocapitalismo estão finalmente admitindo os problemas do NEM, embora insistam que a implementação não pode retroceder. O discurso agora é condicional: a reforma do ensino médio produzirá seus miraculosos efeitos se “bem implementada”.

O milagre da boa implementação atende pelo nome de financiamento. Para realizar a promessa de “liberdade de escolha”, é preciso ter escolas com infraestrutura adequada e profissionais da educação bem remunerados e com condições de trabalho e carreiras compatíveis com um ensino médio de alta qualidade. A incensada universalização da qualificação profissional no ensino médio exige ampliação proporcional das redes físicas de ensino técnico público e gratuito. Já a expansão da carga horária, com a consequente ampliação do ensino de tempo integral para quem mais precisa (isto é, estudantes mais pobres e do período noturno), demanda a criação de políticas de permanência estudantil na educação básica, coisa que o ensino superior público já realiza há décadas. Contudo, não há qualquer sinalização de que tais “revisões” ou “aperfeiçoamentos” venham a ocorrer.

A Lei n. 13.415/2017 deriva da nefanda Emenda Constitucional n. 95/2016, o “Teto de Gastos” que impede o Estado de gastar com políticas sociais. Assim como as suas duas irmãs – as reformas trabalhista e da Previdência –, a reforma do ensino médio é profundamente antipopular.

Sim, há evidências suficientes para afirmar que o NEM visa simplificar a formação de uma massa de jovens para um precarizado e plataformizado “mercado de trabalho” contemporâneo, cristalizando desigualdades de oportunidades entre ricos e pobres. No estado de São Paulo, onde aulas de Química e Sociologia foram suplantadas por disciplinas eletivas como “Brigadeiro gourmet” e “Mundo pet” em algumas escolas estaduais, um dos elaboradores das apostilas oferecidas aos professores como apoio curricular aos itinerários formativos do NEM é o iFood. As secretarias de Educação nem se preocupam mais em disfarçar.

O argumento falacioso dos defensores do NEM de que “não se pode voltar para trás” é uma tentativa de simplificação do debate. Alega-se que a revogação da Lei n. 13.415/2017 implicaria um retorno ao “modelo” de ensino médio anteriormente vigente, e cujos defeitos pretensamente insanáveis foram cantados em prosa e verso durante cinco anos pela propaganda da reforma financiada pelo MEC, por governos estaduais e por diligentes parceiros de institutos e fundações empresariais: “a escola é chata”, “os estudantes não gostam da escola”, “é preciso trazer o ensino médio para o século XXI”, “o ensino médio brasileiro não forma para as profissões do futuro” etc. etc.

A ideia é desviar o assunto do fato objetivo de que a reforma vem piorando a qualidade do ensino médio brasileiro. Se o ensino médio anterior não era bom, as coisas agora estão piores. Se antes havia 13 disciplinas nas escolas – o que era apontado como um grave problema por “especialistas” ligados ao mercado –, com o NEM foram criadas dezenas de microdisciplinas, todas sem conteúdo. Portanto, a “volta para trás” em termos de equidade educacional e de acesso ao conhecimento é justamente a continuidade da implementação de uma reforma que dizima o ensino médio público brasileiro.

A ideologia reformista alimenta a ideia de que as reformas educacionais sempre caminham “para a frente”, no sentido da melhoria da qualidade da educação. Com o NEM, contudo, a qualidade da escola está piorando precisamente em razão da reforma. Nesse sentido, a revogação da Lei n. 13.415/2017 é medida desejável, pois voltaríamos a uma situação menos ruim do que a atual. É definitivamente possível estancar essa perversidade, já que a maioria dos estados vem implementando a reforma de maneira lenta e escalonada. O deputado federal Glauber Braga (PSOL/RJ) vem encabeçando um abaixo-assinado pela revogação que popularizou a hashtag #RevogaNovoEnsinoMédio.

O recente anúncio de mudanças no Enem, com vistas a adequá-lo a um currículo de ensino médio esvaziado de conteúdos, pode significar, na prática, a inviabilização do exame como processo seletivo universal, estimulando nas universidades a recriação de vestibulares locais e de outros instrumentos elitistas para o ingresso em cursos superiores de alta concorrência.

Considerando que o governo Lula segue expressando o desejo de recuperar a exitosa trajetória de democratização do acesso das massas ao ensino superior de 15 anos atrás, como ele irá sustentar o apoio a uma reforma educacional como o NEM, que barateia a educação escolar dos mais pobres, simplifica o currículo do ensino médio e sonega o conhecimento a pessoas cujo acesso à educação básica de qualidade sempre foi negado? A reforma do ensino médio não é reformável e deve ser revogada.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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