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A Ciência Política e um olhar sobre os Legislativos

O novo desafio orçamentário do governo Lula: das "emendas pix" às "emendas participativas"

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Por Vítor Sandes
Atualização:

*Texto escrito em parceria com Carla Bezerra, pesquisadora do IPEA e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, e Raul Bonfim, pesquisador do Instituto Locomotiva.

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Com a eleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado na semana passada, está definido o cenário político para os próximos dois anos, no qual Lula terá que negociar para aprovar sua agenda sem contar com um forte aliado na presidência dessas casas. Isso passará, dentre outros temas, pelas Emendas Parlamentares, mas em novas bases, uma vez que a prática conhecida como "orçamento secreto" foi declarada inconstitucional. Permanece, porém, outra modalidade de incidência dos parlamentares no orçamento, também pouco transparente, e que tende a crescer: as transferências especiais, também conhecidas como "emendas pix". Neste artigo, apresentamos como funciona essa outra modalidade ainda pouco conhecida e propomos como o Governo Federal poderia aumentar a sua transparência incentivando a participação dos cidadãos desses municípios na fiscalização e definição final dos recursos de transferências especiais.

No dia 19 de dezembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais as emendas orçamentárias do relator geral, o "orçamento secreto", tecnicamente também chamadas de RP 09. Para a relatora, ministra Rosa Weber, esse instrumento  não contemplava os princípios de planejamento, transparência e responsabilidade fiscal que regem o processo orçamentário brasileiro, especialmente pela impossibilidade de se identificar o parlamentar responsável pela indicação dos recursos. As emendas de relator não são novas. Elas estão previstas na Constituição Federal, além das Resoluções da Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMPOPF), e sua função se restringia originalmente a corrigir erros e omissões na proposta orçamentária do Executivo. Entretanto, desde 2020, membros do Congresso Nacional ampliaram os poderes do relator geral do orçamento via Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para que ele pudesse inserir novas despesas no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) encaminhado pelo governo. Denúncias  apontam que esses recursos vinham sendo utilizados para atender grupos de parlamentares durante as votações de interesse do governo no Congresso, sem que fosse possível identificar os congressistas responsáveis pela indicação e, consequentemente, beneficiados com as emendas.

Dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP) mostram que entre 2020 e 2022 foram empenhados em torno de R$45 bilhões em emendas do relator geral. Para 2023, estava previsto um total de R$19,4 bilhões para essa modalidade de emenda. Porém, devido à decisão de inconstitucionalidade tomada pelo STF, esse montante orçamentário foi suspenso.  Uma das soluções encontradas pelos parlamentares para  continuar mantendo o acesso a esses recursos foi turbinar, através da Emenda Constitucional (EC) nº 126/2022 ('Emenda da Transição"), os valores das emendas impositivas individuais. As novas regras adotadas mudaram a base de cálculo das emendas individuais, ampliando seu limite de execução obrigatória de 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL) do ano anterior para 2%. O fim do orçamento secreto, no entanto, ao invés de resolver um problema transparência, pode contribuir para reforçar um mecanismo igualmente problemático: as transferências especiais.

As transferências especiais, também conhecidas como "emendas pix", foram criadas no final de 2019, por meio da EC 105/2019, O novo dispositivo permitiu aos parlamentares destinar suas emendas para os entes subnacionais sem a necessidade de firmar convênios ou mesmo de vinculação aos programas do governo federal, uma vez que os recursos são incorporados ao orçamento municipal. A regra exige que, no mínimo, 70% dessas transferências sejam aplicadas em despesas de capital. Além disso, essa modalidade de transferência contribui na redução da discricionariedade do Executivo sobre o processo de execução das emendas individuais, tendo em vista seu caráter impositivo.

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Para 2023, em torno de R$ 6,7 bilhões serão aplicados nessa modalidade de transferências, ou seja, 32% dos recursos totais aprovados das emendas individuais serão gastos por meio desse dispositivo. O gráfico 1 abaixo apresenta a evolução dos valores autorizados para as emendas individuais entre 2015 e 2023, em que se percebe que, desde 2020, primeiro ano de vigência, seus valores seguem crescendo de maneira gradual.

 

 

Uma dado interessante é que as transferências especiais têm o potencial de levar recursos federais para locais que eventualmente tem pouca capacidade - poucos funcionários e infraestrutura - para realizar convênios, formato exigido para executar as demais emendas. Dados da plataforma +Brasil indicam que, entre 2020 e 2022, 4.636 municípios foram atingidos com esses recursos (83% do total).

Entretanto, isso hoje não significa que esses recursos tenham sido utilizados para responder às demandas urgentes da população local, já que há também sérios problemas de transparência e fiscalização nesta modalidade. Se por um lado, o orçamento secreto não permitia identificar o autor da indicação da emenda, as transferências especiais não permitem identificar com quais políticas esses recursos serão gastos. Não há qualquer mecanismo de controle estabelecido para monitorar a execução de recursos que são utilizados em sua maioria para obras ou aquisição de material permanente, como tratores, por exemplo. Ou seja, a possibilidade de desvios e corrupção é enorme.

Em sua campanha, Lula falou diversas vezes sobre criar um "Orçamento Participativo" em contraposição ao Orçamento Secreto. A ideia era um tanto vaga naquele momento, mas ela tem um bom potencial para promover maior transparência e envolver os cidadãos na definição e fiscalização dos recursos das transferências especiais. Bastaria que, como condição para executar os recursos, o Executivo local tivesse que realizar um processo de consulta com a população sobre como utilizar o dinheiro. Os parlamentares seguiriam com o poder de indicar o município, como fazem hoje, mas não o item final.

Há diversos exemplos de políticas em que o Executivo cria condicionalidades para transferências de recursos aos municípios, como na saúde, assistência social e educação. Essas condicionalidades têm se mostrado eficientes ferramentas de coordenação de políticas públicas entre o governo federal, estados e municípios. Um exemplo comum na saúde e na assistência é a exigência de criação de conselho municipal, responsável por fiscalizar e acompanhar as políticas, para poder receber recursos. Isso produziu uma rede muito capilarizada de conselhos nessas áreas, com presença em praticamente todo o território nacional, conforme mostram Gurza Lavalle e Barone.

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Da mesma forma, o governo federal poderia estabelecer diretrizes de como as prefeituras teriam que realizar essa consulta à população, gerando um potencial para a criação de milhares de "orçamentos participativos" municipais, em um desenho que envolveria o executivo e o legislativo federais, o poder municipal e a população local na definição final do uso dos recursos. Esse desenho tem o potencial de ampliar a transparência e a fiscalização, sem alterar a prerrogativa do legislativo, com fortalecimento da participação e da própria democracia.

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