O Enem e o pensamento crítico

MEC abre flanco desnecessário quando não apresenta aos candidatos uma diversidade maior de autores ou pontos de vista em temas complexos

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Curso pré-vestibular na Tijuca. Hermes de Paula

Muito já foi dito na semana passada sobre as queixas de viés ideológico em algumas questões do Enem. As duas mais polêmicas apresentavam trechos bastante críticos ao agronegócio. Mesmo que a principal competência avaliada ali fosse a interpretação de texto — nenhum estudante precisava concordar com a visão do autor para acertar a questão —, nos atuais níveis de polarização, sempre haverá críticas, justas ou injustas. O MEC, no entanto, abre um flanco desnecessário quando não apresenta aos candidatos, no conjunto das provas, uma diversidade maior de autores ou pontos de vista em temas complexos.

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Os efeitos — positivos e negativos — da expansão do agronegócio no país estão certamente nessa categoria de complexidade, em que, mais do que buscar um julgamento binário, importa sobretudo o desenvolvimento de um pensamento crítico, definido na Base Nacional Comum Curricular como a capacidade de investigação, reflexão, análise crítica, imaginação e criatividade para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções com base nos conhecimentos das diferentes áreas. Entender as disputas no campo, tendo acesso a diferentes visões — desde que embasadas cientificamente — é fundamental para o desenvolvimento desta competência.

É certo que o desenvolvimento do pensamento crítico não virá a contento num modelo educacional preso a uma visão arcaica de transmissão de conteúdos. Estudantes precisam de um conhecimento básico para se aprofundarem em temas relevantes, mas também de oportunidades qualificadas para investigar e debater de maneira respeitosa e qualificada com seus pares, sob orientação dos professores. E os ganhos com essa abordagem, quando bem-feita, podem ser percebidos até no desempenho em disciplinas tradicionais. Este foi, aliás, o principal achado de um estudo publicado há duas semanas na revista científica "Educational Evaluation and Policy Analysis", editada pela Associação Americana de Pesquisas Educacionais (Aera, em inglês).

O estudo investigou o impacto em escolas públicas de Boston de um programa de incentivo a debates, em que, ao longo de um ano letivo, jovens do ensino médio se engajam na investigação de um tema relevante (por exemplo, imigração, porte de armas ou ações de combate à criminalidade) e são incentivados a confrontar seus argumentos com colegas com visões distintas. O achado mais importante do estudo – das pesquisadoras Beth Schueler (Universidade de Virgínia) e Katherine Larned (Harvard) — foi o impacto positivo e significativo — em geral visto apenas em pesquisas de primeira infância — dessa estratégia no desempenho em Linguagem e na probabilidade de estudantes completarem o ensino médio e ingressarem no superior, especialmente no caso de jovens de menor nível socioeconômico.

Na transposição dessas conclusões ao caso brasileiro, como sempre, são necessárias cautelas. A mais importante é que esses debates fazem parte da cultura escolar americana, gerando até competições nacionais. Ainda que não exija grandes investimentos em infraestrutura, ela demanda tempo dos professores e alunos, e uma estratégia muito bem delineada de como conduzir o processo. Feita essa ressalva, trata-se de uma abordagem que pode também ser melhor trabalhada em nossas escolas.

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