Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP

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Joel Pinheiro da Fonseca
Descrição de chapéu Enem

O Enem é ideológico?

Estudante não é chamado a se posicionar; é-lhe pedido que interprete autores

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Sinais de que o ano se aproxima do fim: decoração de Natal nas lojas e discussões sobre a "ideologia" no Enem. Desta vez não foi diferente: a bancada do agro já pediu que o MEC anule três questões da prova, por terem "cunho ideológico".

Nos anos anteriores, a preocupação com a "ideologia" (fantasma que ninguém define direito) na prova se centrava em temas de sexualidade —lembremos da pergunta sobre o dialeto LGBT, em 2018, que fez tremer a família brasileira— e da ditadura militar, que chegou a ser banida da prova.

No campo da sexualidade, este Enem não ousou. Já a ditadura voltou a figurar, como deve ser. Ideológica era a decisão de censurar menção a um período importante de nossa história recente.

Estudantes aguardam abertura de portão da Unip (Universidade Paulista) na Aclimação, em São Paulo; Enem é uma das principais portas de entrada no ensino superior
Estudantes aguardam abertura de portão da Unip (Universidade Paulista) na Aclimação, em São Paulo; Enem é uma das principais portas de entrada no ensino superior - Zanone Fraissat - 5.nov.23/Folhapress

Há boa variedade de temas, inclusive vários que destoam de opções ideológicas simplórias: a opressão de mulheres afegãs com a volta do Taleban, a política da China para esmagar minorias étnicas, o imperialismo dos incas, a devoção popular da Cavalgada de Santana. A questão 71, uma das três que revoltaram a bancada do agro, é uma das mais interessantes: apresenta dois pontos de vista opostos —um otimista, um pessimista— sobre a nova corrida espacial protagonizada pelos super-ricos. O que há de ruim nisso?

Uma das outras perguntas (70) que incomodou o agro fala do desmatamento na Amazônia, mas com uma nuance importante: diz que a soja não é responsável por ele. Discutir o desmatamento já é "ideologia"? Sobra a questão 89, que realmente traz uma visão bastante negativa do agronegócio moderno, embora isso venha como a opinião de um autor a ser lida e interpretada pelo estudante, e não como a afirmação de um fato.

Na seleção de autores, aí sim, ficam claras as preferências ideológicas do Enem: Sartre, Foucault, Merleau-Ponty, Paulo Freire, Milton Santos. São autores de referência, e não há nada a se objetar em sua inclusão, mas falta diversidade. Em particular, faltam vozes mais à direita. A prova quase nada afirma sobre a realidade; fora uma ou outra questão, temos só leitura e interpretação de textos.

Sendo assim, o mosaico de textos deveria abarcar a diversidade ideológica da produção intelectual do país e do mundo, algo que só virá se nossa academia passar a valorizar o debate de ideias, e não a mera reprodução das mesmas referências.

O Enem me fez lembrar da minha passagem pela academia brasileira, na graduação e mestrado em filosofia. O estudante não é, em nenhum momento, chamado a se posicionar. É-lhe pedido apenas que interprete diferentes autores. O acadêmico brasileiro se esconde atrás das citações, deixando ver suas preferências apenas na escolha dos comentadores que citará. É o mesmo espírito do Enem.

E aí mora o maior problema: toda essa sofisticação na leitura de textos acaba impedindo a referência à realidade, sem a qual nada daquilo faz sentido. O que costuma ser visto como um mérito da prova —não demandar "decoreba"— é uma fraqueza. Ela exclui mais do que inclui. A leitura dos textos é difícil. As respostas são ambíguas. Não raro, mais de uma se encaixa. Caetano Veloso, que tem duas músicas citadas numa questão, disse que não conseguiria responder. Para ele, todas as alternativas estão certas.

O que será mais democrático: lançar o estudante num mar de textos, alguns com palavras difíceis e temas de que ele nunca ouviu falar, ou cobrar um pouco menos disso e um pouco mais de datas e fatos importantes da nossa história e do nosso presente? Se ele não sabe quem foi Tiradentes ou quando começou a ditadura, qual a chance de que consiga ler e interpretar Foucault?

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Comentários

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Bruno Andreoni

14.nov.2023 às 11h42

A ideologia consiste de três licenças. Uma é a licença lógica - a ideologia dispensa as afirmações de fazerem sentido. Exemplo, a atitude dos nazistas em relação aos judeus, coisa sem pé nem cabeça que mobilizou uma sociedade. Outra, a licença pragmática: resultados são ignorados. Exemplo, o método Paulo Freire, que simplesmente não ensina a ler. A terceira licença é a moral, que nem precisa de exemplo.

CELSO ACACIOO GALAXE DE ALMEIDA

10.nov.2023 às 16h03

Ao destacar a importância das datas e personagens o autor se filia ao Positivismo, pensamento que se contrapõe ao caráter negativo do Iluminismo, este, usado contra o Feudalismo, foi desprezado quando a crítica se voltou contra as mazelas do capitalismo, assim, o Positivismo buscava afirmar a ordem, está escrito na bandeira do Brasil, "ordem e progresso" mesmo que essa ordem seja calcada na exploração e injustiça social!

adenor Dias

8.nov.2023 às 6h40

Eu não sei definir corretamente o que é ideologia, mas arrisco dizer que isso não passa de interesses individuais! Uma coisa errada, pode ser de interesses de quem se beneficie, se tornado uma ideologia egoísta de alguém, que mesmo sabendo que está errado defende tal assunto...