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O canal de denúncias nas escolas

Apelar para o denuncismo expressa uma perigosa forma de autoritarismo

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Por Notas & Informações
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Em nova decisão equivocada, que poderá prejudicar o ambiente nas escolas, a ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, anunciou que, por iniciativa dela e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, o governo lançará um canal para que os pais de alunos possam denunciar professores que, em suas aulas, atentem “contra a moral, a religião e a ética da família”.

“Temos o conceito do que é bom”, afirmou a ministra, sem esclarecer qual será o formato do canal de denúncias. Segundo ela, o governo pretende lançá-lo ainda neste ano, com o objetivo de estimular parcerias entre escola e família, “onde cada um esteja ciente de seu dever e papel”. Paralelamente a essa iniciativa, tramita na Câmara um projeto apresentado pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), vinculada ao presidente Jair Bolsonaro, que confere aos alunos da rede pública o direito de gravar aulas, “a fim de viabilizar o pleno exercício do direito dos pais de ter ciência do processo pedagógico”.

Relegando para segundo plano o fato de que esse tipo de medida é adotado somente em regimes autoritários, independentemente de sua cor ideológica, ao justificar a iniciativa Damares alegou que o governo Bolsonaro está cumprindo apenas o que determina a lei. E, em vez de buscar fundamento jurídico na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, ela invocou um dispositivo da Convenção de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), mais conhecido como o Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. “Lá está dizendo que a escola não pode ensinar nada que atente contra a moral, a religião e a ética da família”, disse ela.

Do ponto de vista jurídico, o argumento é uma aberração. Em primeiro lugar, porque a Convenção é um texto programático – ou seja, enuncia princípios. Por isso, não pode se sobrepor à Constituição, que é um texto mandatório, e que no artigo relativo às garantias fundamentais e às liberdades públicas é taxativa ao garantir as liberdades de manifestação do pensamento, de consciência, de expressão da atividade intelectual e de cátedra.

Em segundo lugar, a ministra se esquece – ou ignora – que a ênfase do Pacto de San José da Costa Rica à moral, à religião e aos valores da família tem por objetivo garantir o pluralismo de identidades e de valores em sociedades heterogêneas, principalmente no caso da América Latina, integradas por distintas populações indígenas e imigrantes europeus, asiáticos e africanos. Em outras palavras, a Convenção da OEA segue uma linha programática diametralmente oposta à do governo Bolsonaro, que despreza o pluralismo ao tentar impor o que entende como moral, religião e ética ao professorado brasileiro. Custa a crer que a ministra dos Direitos Humanos e o ministro da Educação invoquem uma convenção de direitos humanos para justificar uma iniciativa autoritária, que os afronta acintosamente.

Do ponto de vista pedagógico, a iniciativa do governo é, também, absurda. A desconfiança dos pais com relação aos professores, por exemplo, acabará prejudicando a aprendizagem dos alunos, advertem os pedagogos. “Eles precisam estar expostos a opiniões diferentes e a iniciativa do governo vai atrasar ainda mais o País”, afirma Priscila Cruz, presidente do movimento Todos pela Educação. “Esse tipo de estratégia prejudicará o diálogo”, diz Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Também há quem lembre que o governo está confundindo política pedagógica com autonomia didática. E, igualmente, quem chame a atenção para o risco de as denúncias dos pais comprometerem o princípio da autoridade em sala de aula.

A verdade é que, apelar para o denuncismo como instrumento para impor uma visão de mundo padronizada a todos os professores e escolas do País, sob a justificativa de defender a moral, a religião e a ética da família, é uma iniciativa que expressa uma perigosa forma de messianismo e de autoritarismo.