O caminho de um estudante indígena até o Mestrado em Ciências Naturais: 'A aldeia é nossa escola'

Hoje professor e líder de seu povo, Dzoodzo Baniwa explica como transmite conceitos de física teórica enquanto ensina seus alunos a suprir demandas de território na Amazônia

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DzooDzo Baniwa é professor da Escola Eeno Hiepole ("umbigo do mundo"), na Aldeia Canadá — Foto: Divulgação/ISA

D zoodzo Baniwa tinha 10 anos de idade quando começou a estudar numa escola da Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a poucos quilômetros da fronteira com a Colômbia. Só que, como o professor era do povo Baré e não falava o idioma dos Baniwa, as aulas eram ministradas em português, língua que Dzoodzo não dominava.

Sem entender quase nada do que estava sendo dito em sala, o menino desenvolveu um medo da escola e quis desistir. Mas, como seu pai o obrigava, ele continuou frequentando as aulas e, com a ajuda fundamental dos irmãos, superou as dificuldades do início e foi longe na vida acadêmica. Hoje aos 38 anos, Dzoodzo é professor licenciado em Física Intercultural, com mestrado em Ciências Ambientais.

Além de dar aulas no ensino médio da Escola Baniwa Eeno Hiepole (“umbigo do mundo”, no idioma local), na Aldeia Canadá, onde mora, o educador lidera projetos comunitários de agroecologia e piscicultura, sempre buscando, em ambas as atividades, multiplicar a comunhão entre o conhecimento tradicional da floresta e as teorias absorvidas ao longo do seu percurso acadêmico.

Por que a escola na aldeia se chama “umbigo do mundo”?

O nome era Escola Municipal Indígena Tiradentes. Mas o personagem Tiradentes não vem da nossa cultura. Quando a gente discutiu a ressignificação da educação no nosso território, procuramos adequar o ensino às nossas práticas locais e, entre outras coisas, achamos que precisava mudar o nome. Na nossa cosmologia, Eeno Hiepole é o local de onde o nosso povo emergiu. O objetivo da mudança era fazer a conexão dos valores ancestrais com o contexto atual da educação no território, produzindo saberes significativos para a nossa vida. E usar referências da nossa cultura no ensino fortalece a identidade.

A Escola Eeno Hiepole ("umbigo do mundo"), na Aldeia Canadá, na Terra Indígena Alto Rio Negro — Foto: Divulgação

Essa conjunção entre o ensino básico “ocidental” e a cultura local não existia da mesma forma quando você ingressou na escola?

Além de o meu professor não falar meu idioma, o conteúdo era passado com referências que não pertencem ao nosso universo. Não é ideal ensinar uma criança daqui a letra “E” do alfabeto usando um elefante de exemplo. Quando fui para a Tanzânia, ano passado, participar do “Fórum Global Escolas2030”, minha maior curiosidade era ver de perto uma girafa. Os livros didáticos estavam cheios de girafas na minha infância. Hoje, nas aulas, a gente ensina usando elementos locais, frutas, animais e atividades típicas da nossa terra. Faz mais sentido para a criança daqui.

Ainda falta essa visão nas políticas públicas do governo em relação às escolas indígenas?

O modelo precisa se adequar melhor à nossa realidade. Quando a equipe do “Fórum Global Escolas2030” pediu para eu enviar uma foto da nossa escola, antes do evento, eu mandei uma foto da nossa aldeia. A aldeia é a escola, o saber é a vida na floresta. Quando a gente adapta o ensino proposto pelo Estado para o nosso cotidiano, a nossa população pode se beneficiar mais dessa educação na prática, desenvolvendo projetos voltados para a melhoria da qualidade de vida no território.

Você buscou isso ao longo de seu caminho até o mestrado em Ciências Ambientais?

Quando terminei a primeira parte do Ensino Fundamental, não havia a segunda etapa no território. Foi quando meu povo se organizou para reivindicar e refletir sobre como deveria ser o conteúdo. Discutimos modelo, calendário, metodologia etc. Queríamos uma educação transversal e integral, próxima do nosso cotidiano. Completei o Ensino Fundamental na aldeia e fiz o Ensino Médio supletivo em Manaus. Depois, cursei Licenciatura em Física no Instituto Federal do Amazonas (Ifam), em São Gabriel da Cachoeira, e fiz Mestrado em Ciências Ambientais na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

De que forma você aliou o conteúdo escolar com a realidade de aldeia?

Quando cheguei no ensino médio, confirmei na teoria vários conhecimentos que eu já empregava na prática, trabalhando com projetos de piscicultura. Entrei em contato com cálculos que passei a usar, por exemplo, para controlar a vazão da água ou o nível de oxigênio da água. Foi quando me interessei pelo assunto e decidi estudar Física na faculdade. Durante o curso, comecei a dar aulas na aldeia e a assistir projetos de piscicultura e agricultura no território.

Alunos da Escola Eeno Hiepole, na Aldeia Canadá, Terra Indígena Alto Rio Negro — Foto: Divulgação

Que tipo de projetos?

Tradicionalmente, as mulheres buscam água no igarapé para as atividades na comunidade. Eu queria facilitar o processo. Então, criamos um sistema de bombeamento para levar a água até mais perto da aldeia. Esse sistema já está instalado em 20 das 85 aldeias Baniwa no território e, agora, vamos levá-lo a outras 20 comunidades.

E como você multiplica esse conhecimento entre os seus alunos na aldeia?

Sou professor, acadêmico, líder indígena, pescador, caçador, pai de família, motorista de barco, agricultor... Aplico e dissemino conhecimentos em todas as atividades. Nas aulas, trabalho os conceitos na prática. Aqui, não há laboratório de física para me ajudar a ensinar eletricidade, mas temos o desafio de levar energia elétrica para as casas. Então, ensino a instalar painel solar enquanto dou aula sobre corrente e resistência elétrica. São lições práticas com teorias necessárias também para a faculdade. Mas não estou muito preocupado com vestibular. Eu ensino para a vida na aldeia. O conhecimento não está só na escola entre quatro paredes, nem apenas nos livros. O conhecimento também está na vida na floresta.

Essa conjunção entre ensino básico “ocidental” e a cultura local não existia da mesma forma quando você ingressou na escola?

Além de o meu professor não falar meu idioma, o conteúdo era passado com referências que não pertencem ao nosso universo. Não é ideal ensinar uma criança daqui a letra “E” usando um elefante de exemplo. Quando fui para a Tanzânia, ano passado, participar do “Fórum Global Escolas2030”, minha maior curiosidade era ver de perto uma girafa. Os livros didáticos estavam cheios de girafas na minha infância. Hoje, nas aulas, a gente ensina usando elementos locais, frutas, animais e atividades típicas da nossa terra. Faz mais sentido para a criança daqui.

Ainda falta essa visão nas políticas públicas do governo em relação às escolas indígenas?

A visão da sociedade ocidental precisa se adequar melhor à nossa realidade. Ter respeito e saber ouvir, ser mais empático. Quando a equipe do “Fórum Global Escolas2030” pediu para eu enviar uma foto da nossa escola, eu mandei uma foto da aldeia. A aldeia é a escola. Então, é preciso adequar o ensino básico à nossa realidade, para que a nossa população se beneficie dessa educação na prática, desenvolvendo projetos voltados para a melhoria da nossa qualidade de vida.

Como foi seu caminho até o mestrado em Ciências Ambientais?

Quando terminei a primeira parte do Ensino Fundamental, não havia a segunda etapa no território. Foi quando meu povo se organizou para reivindicar e refletir sobre como deveria ser o ensino. Discutimos modelo, calendário, metodologia etc. Queríamos uma educação tranversal e integral, próxima do nosso cotidiano. Completei o Ensino Fundamental na aldeia e fiz o Ensino Médio supletivo em Manaus. Depois, cursei Licenciatura em Física no Instituto Federal do Amazonas, em São Gabriel da Cachoeira, e fiz meu Mestrado em Ciências Ambientais na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

De que forma você aliou o conteúdo escolar com a realidade de aldeia?

Quando eu cheguei no ensino médio, confirmei na teoria vários conhecimentos que eu já empregava na prática, trabalhando com projetos de piscicultura. Entrei em contato com cálculos que passei a usar, por exemplo, para controlar a vazão da água ou o nível de oxigênio da água. Foi quando eu decidi estudar Física na faculdade. Durante o curso, comecei a dar aulas na aldeia e a assistir projetos de piscicultura e agricultura no território.

Que tipo de projetos?

Tradicionalmente, as mulheres buscam água no igarapé para as atividades na comunidade. Eu queria facilitar o processo, então, criamos um sistema de bombeamento para levar a água até mais perto da aldeia. Esse sistema já está instalado em 20 das 85 aldeias no território e, agora, vamos levá-lo a outras 20 comunidades.

E como você multiplica esse conhecimento entre os seus alunos na aldeia?

Sou professor, acadêmico, líder indígena, pescador, caçador, pai de família, motorista de barco, agricultor... Aplico e dissemino conhecimentos em todas as atividades. Nas aulas, trabalho conceitos na prática. Aqui, não há laboratório de física para ensinar eletricidade, mas temos o desafio de levar energia elétrica para as casas. Então, ensino a instalar painel solar enquanto enquanto dou aula sobre amperagem, corrente e resistência elétrica. São lições práticas com teorias necessárias para a faculdade. Mas não estou preocupado com vestibular. Eu ensino para a vida na aldeia. O conhecimento não está só na escola entre quatro paredes, nem só nos livros. O conhecimento está na vida na floresta.

Como esse ensino diverge do pensamento convencional sobre a formação do indivíduo na sociedade ocidental?

É preciso repensar o pensamento humano. Na sociedade não indígena, importa muito o capital, a dominação. Se tenho uma loja, quero abrir outra, aumentar a arrecadação. Mas nós temos outra lógica. A Amazônia é um sistema vivo e fluido. Nas nossas narrativas, houve um tempo em que as pessoas se comunicavam com animais e se transformavam em animais e vice-versa. Hoje, convivemos em harmonia com os outros seres porque somos todos fundamentais para o equilíbrio do sistema. Este equilíbrio é nossa casa. O respeito é a nossa casa. Porque, se uma peça falha, gera impacto no sistema.

De que forma os Baniwa sentem os impactos da maneira como essa mesma sociedade ocidental se relaciona com o ambiente?

A gente monitora esse impacto há dez anos. Não fazemos desmatamento, queimadas ou grandes obras, mas sofremos os efeitos das mudanças climáticas. Desde 2017, vivenciamos uma série de fenômenos. Naquele ano, as plantas produziram frutas menores que o normal. Cultivos de açaí, pimenta e outros foram afetados. Em 2018, houve seca extrema no Rio Negro, o que prejudicou abastecimento. Já em 2021, tivemos uma enchente nunca vista antes no território, o que devastou várias roças. Sofremos perdas graves de mandioca, abacaxi, cará... Ano passado, também houve cheia acima do normal.

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