Fernando Schüler

O bom-senso dos “sem ideologia”

O bom-senso dos “sem ideologia”

A pesquisa da Perseu Abramo é muito reveladora da lógica opaca de seus autores. Na vida prática, as pessoas, há muito tempo, não dividem o mundo entre “burguesia” e “classe trabalhadora”

FERNANDO SCHÜLER
07/04/2017 - 19h32 - Atualizado 07/04/2017 20h14
Salão de cabelereiro na Rocinha (Foto: Leticia Moreira/ Folhapress)

Os pesquisadores da Fundação Perseu Abramo fizeram um bom trabalho. Foram lá na periferia de São Paulo e descobriram muita gente de bom-senso. Pessoas que apostam no trabalho e no mérito pessoal, sonham em empreender, não acreditam muito no governo, em escolas públicas e andam relativamente pouco preocupadas com política. Achei ótimo isso. O que parece ter chamado a atenção, no trabalho, foi o contraste dessas ideias simples e relativamente previsíveis com a narrativa partidária. A pesquisa sugere que os moradores da periferia se tornaram mais “liberais” com a ascensão econômica da década passada. E acentuaram uma cultura individualista, pouco dada a soluções comunitárias, na crise recente. Será? Faz sentido buscar um “encaixe” ideológico, à esquerda ou à direita, para a atitude simples e pragmática das pessoas que vivem e trabalham na periferia de São Paulo?

Nossos pesquisadores sugerem que os mais pobres “assumem o discurso propagado pela elite apontando a burocracia e os altos impostos como empecilhos para o empreendedorismo”. Lendo isso, não sei por que, me lembrei do Sebrae. Será que o pessoal do Sebrae andou pela periferia de São Paulo fazendo a cabeça de todo mundo? Ou será que alguém por lá leu que estamos no 123º lugar no Doing business do Banco Mundial, que mede a facilidade para fazer negócios, e em 181º no quesito “pagamento de impostos”? Será que precisa mesmo aderir ao discurso da elite para saber dessas coisas? Ponto para a periferia de São Paulo. Aliás, achei sensacional a turma dizendo que quer abrir uma franquia da Cacau Show ou da “casa da batata frita”. Me deu até uma esperança no Brasil.

A pesquisa diz que as pessoas “querem colocar filho na escola particular ou pagar convênio médico” quando conseguem dinheiro para pagar. Achei ótimo isso. O Ideb médio das escolas privadas é 51% superior ao das escolas públicas e parece óbvio que os pais façam essa escolha. É a mesma lógica, perfeitamente legítima, que leva políticos de “esquerda” a frequentar o Hospital Sírio-Libanês. Por que os moradores da periferia deveriam agir contra seu próprio interesse? Na curiosa visão dos pesquisadores, eles fazem isso porque há “pouca valorização do público”. Se eu fosse pesquisador da Fundação, sugeriria outra hipótese: eles fazem isso para se defender da precariedade do Estado. Se os dados do Ideb mostrassem resultado inverso, a mães da periferia mostrariam uma súbita “desvalorização do privado”.

Nossos pesquisadores descobriram que, fora do mundo metafísico dos manuais de sociologia, não faz nenhum sentido a ideia de um conflito entre “burguesia” e “classe trabalhadora”. Ainda me lembro, nos anos 1980, quando ouvi falar pela primeira vez a palavra “burguesia”. Virou uma das minhas palavras favoritas, mas confesso que nunca entendi exatamente a que ela se refere. Renda? Estilo de vida? Domínio sobre o capital? Adesão a certas ideias? Nunca entendi, mas ao menos agora vejo que não estou sozinho. No mundo “líquido” do século XXI (homenagem ao Zygmunt Bauman), da sharing economy e das mil e uma formas de empreendedorismo, é mesmo curioso imaginar que alguém insista em dividir o mundo entre capital e trabalho, ricos e pobres e coisas desse tipo.

>> Mais textos de Fernando Schüler

Vale o mesmo para a lógica “direita e esquerda”. Nossos pesquisadores parecem ter descoberto que os habitantes da periferia não se orientam por uma coisa nem outra. Vamos lá: apostar no mérito individual é ser de direita? E falar em oportunidades é ser de esquerda? Valorizar a família, desejar bens de consumo, professar uma religião, criticar a ineficiência do governo ou achar que todos merecem respeito significa estar de um lado ou outro da régua mágica da ideologia?

Quem escreveu muito sobre essas coisas foi George Orwell. Orwell era fascinado pela vida e pela forma de pensar do homem comum.Admirava seu bom-senso e sentido prático diante da vida. Chegou a viver nos abrigos de Londres para compreender existencialmente a pobreza. Ao mesmo tempo, fazia troça da tendência à “abstração e ao absoluto” dos intelectuais de seu tempo. Orwell teria gostado da pesquisa da Fundação Perseu Abramo. Apreciaria escutar uma mãe pobre dizer que “você está pagando e pode exigir e em escola pública você vai exigir de quem?”. E acharia graça da turma bacana que fez a pesquisa dizendo que “o capitalismo tenta desprover o cidadão de todos os elementos que constituem a identidade”. Orwell conhecia, como poucos, o socialismo, e tenho certeza de que não acreditaria se lhe contassem que uma frase dessas seria dita num dia qualquer de 2017.

De minha parte, gostei da pesquisa. Ela não revelou, é verdade, nada de novo sobre a forma de pensar dos “sem ideologia”. Dos pesquisados. Mas nos informou muito sobre a lógica opaca de seus autores. Sua narrativa feita de grandes palavras nas quais o bom-senso popular teima em não se encaixar. Mas o saldo é positivo. Ao menos a turma descobriu, no final, que “a dimensão da vida privada é central para a constituição da subjetividade do indivíduo”. Está lá escrito, na conclusão da pesquisa. Quando li a frase também me senti aliviado. Sempre pensei isso e tinha um medo terrível de ser, lá no fundo, um incurável reacionário. Mas agora me sinto em boa companhia.

Fernando Schuler (Foto: Época)







especiais