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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Novo insulto bolsonarista é dizer que fome no Brasil é uma grande fake news

Moradores reviram caminhão de lixo em busca de restos de comida em frente a supermercado de Fortaleza, capital do Ceará - Reprodução/TikTok/André Queiroz
Moradores reviram caminhão de lixo em busca de restos de comida em frente a supermercado de Fortaleza, capital do Ceará Imagem: Reprodução/TikTok/André Queiroz

Colunista do UOL

12/11/2022 09h39

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A nova onda do naco bolsonarista que vive na realidade paralela vendida pelo atual governo é afirmar que a fome no Brasil é uma grande fake news. A ideia vem do mesmo balaio de onde surgiram aberrações como as eleições foram fraudadas e a cloroquina funciona contra a covid-19 e é distribuída da mesma forma, ou seja, pelas redes sociais e aplicativos de mensagens. Aqui cabe um alerta de spoiler: milhões de famintos discordam.

Em setembro deste ano, foram registrados 977 mil diagnósticos de desnutrição de crianças e adolescentes na atenção básica de saúde, segundo reportagem de Carlos Madeiro, no UOL. Em agosto, eram 136 mil. Em 2015, 27 mil. Para seguidores do presidente, esses jovens devem estar fazendo a dieta do jejum.

Baseados em dados do Banco Mundial e do IBGE sobre a queda da extrema pobreza em 2020, efeito óbvio do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso Nacional devido à pandemia, militantes bolsonaristas negam que a fome seja um problema no país. Um caso clássico de tortura da realidade para que ela grite o que desejam ouvir. O finado coronel Brilhante Ustra ficaria orgulhoso.

Os memes e as postagens de aliados e seguidores do presidente que tratam do assunto ignoram, antes de mais nada, que os dados de 2021 e 2022 não estão disponíveis. E talvez por isso nem citem que o governo Bolsonaro suspendeu o pagamento do auxílio entre 31 de dezembro de 2020 e abril de 2021, exatamente no auge da segunda onda da pandemia, quando mais de 4 mil mortes de brasileiros eram registradas por dia, fazendo com que a fome disparasse em muitos lares.

Depois de muita, muita pressão, o benefício retornou com valor mais baixo. E o Auxílio Brasil só ganhou a configuração de R$ 600 como medida de compra de votos já na eleição.

Esse ambiente de insensibilidade governamental junto com uma inflação galopante principalmente nos alimentos (em 2022, enquanto o IPCA geral está em 4,7%, o dos alimentos atinge 11,8%) e a sabotagem de Bolsonaro no combate à covid-19 que alongou a pandemia estão entre as razões do número de pessoas que passam fome ter subido entre de 19 para 33 milhões entre dois levantamentos da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

Bastaria tirar as lentes de embelezamento do país entregues por Jair para perceber a quantidade de cidadãos pedindo comida na rua. Provavelmente, na cabeça de muita gente que vive na tal realidade paralela, pobre implorando por pão na porta de padarias é ator contratado pelo PT para atrapalhar a vitória de Bolsonaro nas eleições.

Ou um fantasma, uma vez que o próprio Jair perguntou, em agosto, durante entrevista à Jovem Pan: "Alguém já viu alguém pedindo um pão na porta, no caixa da padaria? Você não vê, pô". Na época, isso levou o padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, a postar em sua rede social: "Eu vejo todos os dias".

Para Jair, bem como para muitos de seus seguidores, se há Auxílio Brasil disponível, não há fome. Júlio explicou à coluna na época que uma parte da população mais pobre simplesmente não consegue acessar o benefício por falta de documentação e de estrutura.

"Tenho perguntado diariamente às pessoas se elas estão com o Auxílio. Muitos não porque faltam documentos. Por exemplo, para conseguir que a certidão de nascimento venha de sua cidade natal, às vezes há um custo que nem sempre os órgãos públicos bancam. Outras vezes, a pessoa não tem acesso a um smartphone para fazer seu cadastro", explicou.

Além disso, o benefício não cobre todas as necessidades de uma família - que, além da alimentação, também inclui aluguel, transporte, vestuário. De acordo com o levantamento mensal do Dieese, uma cesta básica custou R$ 762,20, no mês de outubro, em São Paulo - R$ 162,20 acima do Auxílio Brasil. Das 17 capitais analisadas, apenas cinco contavam com a cesta a menos de R$ 600.

No ano passado, cenas de pessoas disputando ossos e carcaças bovinas no Rio de Janeiro e revirando a caçamba de um caminhão de lixo em Fortaleza ficaram célebres como registros dessa fome. Coisas assim não eram vistas há tempos pela população e, pelo visto, continuam não sendo vistas pelos seguidores radicais do presidente.

"Quando o caminhão chega, a gente tem que ser muito ligeira para pegar. Eles jogam, a gente tem quem correr para dentro da caçamba, tem que ser rápido. Os garis não podem dar na nossa mão, porque é o trabalho deles", explicou, em um depoimento em vídeo, uma das mulheres que aparece revirando o lixo em Fortaleza. "O pão de cada dia quem me dá é o lixo. Todo dia, meus filhos e eu vamos para o lixo para comer."

"A fome não é um dia. Diariamente, você precisa comer. Independente da linha ideológica que você tenha, todo mundo vê a fome. Você pode entrar em negação do que viu, mas todo mundo vê a fome", afirmou padre Júlio à coluna na época. "Quem diz que não há fome é porque está vivendo em uma bolha, é insensível ou faz isso como ação política para minimizar os problemas", disse.

Quando preço do leite disparou, governo reduziu distribuição gratuita

Por fim, vale ressaltar que miséria não é só falta de dinheiro.

Dados do CadÚnico mostram que aumentou em 66% a quantidade de família em situação de rua em pouco mais de quatro anos. Isso pode ser atribuído à melhoria na identificação desse segmento no cadastro, mas também ao aumento da pobreza extrema. Afinal, a crise que o governo foi incapaz de gerenciar não deixou cair as migalhas costumeiras da mesa para a população de rua.

O que este governo nunca conseguiu entender é que não é apenas a transferência de renda que retira pessoas da miséria, mas executar o que está previsto na Constituição Federal para garantir qualidade de vida a quem mais precisa.

Como já disse aqui antes, um exemplo disso é que o governo Bolsonaro conseguiu tirar o leite das crianças pobres de duas formas em 2022: viu o produto acumular uma alta pornográfica (apesar de uma queda recente, ele ainda está em 41,2% no ano) e ao invés de aumentar a sua doação para minimizar o estrago, fez exatamente o contrário. Neste ano, a entrega gratuita de leite às famílias em extrema pobreza no Nordeste e em Minas Gerais foi reduzida em 87%.

O Brasil voltou para o Mapa da Fome no mundo por deficiência em políticas públicas de saúde, saneamento básico, educação, transporte, moradia, entre outros serviços que não avançaram no atual governo - mais preocupado em liberar armas e desmatamento.

Sem enfrentar a questão de forma integral, temos duas opções: enxugar gelo ou chamar de mentirosos os que dizem que passam fome porque o "mito" disse que isso não existe.