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Norteados pelo retrovisor

Os proponentes da eliminação dos pisos constitucionais das despesas em saúde e educação ignoram o papel indispensável do Estado na redução das desigualdades estruturais

Por Doris de Miranda Coutinho
Atualização:

Doris de Miranda Coutinho. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O debate em torno da prorrogação do auxílio emergencial, cuja concessão, em 2020, assegurou o mínimo existencial a milhões de beneficiários afetados pela pandemia, tem acumulado controvérsias e despertado a atenção de estudiosos, notadamente quanto à forma de seu financiamento, tendo-se em vista o cenário atual de forte restrição fiscal e de evolução da dívida pública.

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O mote de abertura de espaço no orçamento público motivou a reencarnação da PEC nº 186/2019, apelidada de PEC Emergencial, que integra o conjunto de propostas que consubstanciam o "Plano Mais Brasil", junto às chamadas PEC dos Fundos Públicos (187/2019) e PEC do Pacto Federativo (188/2019), com o propósito de reequilibrar as finanças do Estado, mediante a implementação de um modelo fiscal pautado na "desvinculação, desindexação e desobrigação" da peça orçamentária.

Aproveitando-se da emergencialidade do momento, à qual não corresponde a emergencialidade da proposta, que nitidamente se destina à obtenção de resultados eleitorais de curto prazo, retomou-se a intenção de extinguir os limites mínimos de gastos vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino e às ações e serviços públicos de saúde, conforme se depreende dos incisos IV e V do art. 4º do substitutivo apresentado pelo Senador Márcio Bittar, que revogam os artigos 198, §§2º e 3º, inciso I, e o 212, §§1º e 2º, da Constituição Federal, os quais fixam os percentuais mínimos de repasse a tais áreas.

É evidente que não deveríamos, no panorama atual de profunda crise econômica, fiscal e sanitária, cogitar um trade-off entre a proteção social temporária (o auxílio) e a tutela do custeio adequado e sustentável de direitos fundamentais sociais (os pisos). A despeito disso, a proposta de revogação dos pisos constitucionais em saúde e educação é, a um só tempo, inconstitucional e inconveniente.

Inconstitucional porque, sendo condição mínima de efetivação do direito à vida digna, o financiamento básico das políticas de saúde e de educação compõe a própria estrutura daquele direito, de modo que a sua revogação implicaria inaceitável retrocesso social, contraditório com os objetivos fundamentais da República. Ao arrolar os limites mínimos de aplicação dentre os chamados princípios constitucionais sensíveis (art. 34, inciso VII, "e", da CRFB/88), cuja inobservância dá ensejo à intervenção federal, o legislador constituinte não deixou dúvidas acerca da inexorabilidade dos pisos, sobre os quais se assenta o Estado de bem-estar social.

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Subscrevo ainda a tese de que os dispositivos que garantem o custeio mínimo das políticas de educação e saúde constituem cláusulas pétreas, nos termos do art. 60, §4º, IV, da CRFB/88, pois fornecem a base material-financeira que permite a concretização, de fato, desses direitos fundamentais sociais. Quando diz que a saúde visa a integralidade e universalidade no atendimento, e que a educação mira ao pleno desenvolvimento da pessoa e a garantia do padrão de qualidade, a Constituição ergue um dique contra quaisquer propostas que intentem reduzir o patamar de realização desses propósitos.

Inconveniente, também, porque inobstante a importância de se promover ajustes fiscais que proporcionem a equalização dos déficits públicos e melhorem a eficiência alocativa, tal não pode se dar à custa das conquistas que conformam o nosso pacto civilizatório.

A realidade orçamentária brasileira sugere a escassez crônica de planejamento que sustenta a escolha de prioridades e a alocação dos limitados recursos obtidos junto à sociedade. É temerário, nesse contexto, submeter o montante de destinação de verbas públicas à educação e à saúde ao alvedrio exclusivo dos mandatários políticos, sobretudo porque, na maioria dos casos, o Parlamento se restringe a ratificar a proposta encaminhada pelo Chefe do Poder Executivo, dispensando maior foco apenas às emendas parlamentares impositivas.

Não se quer, com isso, presumir a má-fé dos gestores ou a propensão destes a perpetrar desvios de finalidade, senão respeitar a escolha modelada na Constituição Federal, de associar o planejamento orçamentário, na saúde e na educação, a patamares mínimos pré-definidos de investimentos, abstraindo, ainda que parcialmente, tais alocações da esfera de liberdade política do governante.

A propósito, não obstante a vinculação de gastos à educação vigore desde a Carta de 1934, referida vinculação foi embargada apenas em contextos autoritários, no Estado Novo, de 1937 a 1945, e na Ditadura Militar, de 1964 a 1983, períodos nos quais o financiamento da política educacional sofreu forte redução, gerando impactos negativos na qualidade da oferta de ensino, conforme demonstram evidências empíricas.

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Outrossim, deve-se atentar para o aumento sensível da demanda social ocasionado pela pandemia, o que exigirá maior capacidade de atendimento pelos sistemas públicos de atenção à saúde e educação formal e, nesta medida, reclamarão maior investimentos nessas áreas historicamente subfinanciadas. No caso da educação brasileira, os dados revelam que o investimento por aluno nos ensinos fundamental, média e superior denota níveis significativamente inferiores a países de porte semelhante. Na saúde, o subfinanciamento remonta ao início do século, tendo sido agravado sobremaneira com a promulgação das Emendas nº 86/2015 e 95/2016.

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Além disso, do ponto de vista social, é preocupante que um tema de tamanha importância e cujo impacto é tão massivo, seja levado a efeito sem a participação da sociedade civil organizada e dos órgãos de controle público.

Norteados pelo retrovisor, os proponentes da eliminação dos pisos constitucionais ignoram o papel indispensável do Estado na redução das desigualdades estruturais. A grande preocupação não parece ser a garantia dos direitos sociais, mas sim uma visão restrita de ganhos eleitorais, mesmo que isso implique no sacrifício desses direitos.

*Doris de Miranda Coutinho, conselheira do Tribunal de Contas do Estado do Tocantins, doutora em Ciências Jurídicas. Mestre em prestação jurisdicional e direitos humanos. Especialista em política e estratégia e em gestão pública com ênfase em controle externo. Membro honorário do (IAB) Instituto dos Advogados Brasileiros. Escritora e pesquisadora

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