Por Joana Caldas, g1 SC


Sofia Albuquerck — Foto: Gabris Andrade/@gabris_fotos

Há quase um ano, Sofia Albuquerck e a irmã gêmea, Mayla Phoebe de Rezende, de 20 anos, foram para Blumenau, no Vale do Itajaí, para realizar uma cirurgia de readequação de sexo. Elas contaram a história delas e foram inspiração para outras jovens na mesma situação.

Do lado do ativismo, a DJ Lirous K'yo Fonseca Ávila e a psicanalista Kelly Vieira Meira, ambas com 39 anos, encontraram na ajuda ao outro uma forma de cidadania, solidariedade e resistência.

Neste sábado (29), quando se comemora no Brasil o Dia da Visibilidade Trans, Sofia, Lirous e Kelly contam as dificuldades, mas também as alegrias pelas quais passaram. E refletem sobre o preconceito da sociedade ao longo dos anos.

“Nada é permanente, salvo a mudança. Momentos difíceis acontecem todo dia, mas, depois de uma chuva, existe um arco-íris. Nunca pare de existir, sempre continue para frente”, disse Sofia.

'Hoje a gente tem mais contéudo sobre isso'

Sofia Albuquerck escreveu uma carta para o pai. Ela tenta reatar laços, que mudaram após a transição dela. "Meus pais sempre desconfiaram, o nosso jeito afeminado", relatou. As irmãs são da cidade de Tapira, no interior de Minas Gerais.

A descoberta da família ocorreu quando as gêmeas tinham 10 anos. No celular de Sofia, encontraram uma mensagem que ela dizia que gostava de meninos.

"Disseram que eu ia morar com o meu pai, para ter uma presença masculina na minha vida. Ele dava indiretas de que não aceitava homossexuais na família. A nossa relação mudou muito. Ele não esperava isso, ainda acha que eu ia voltar a ser quem eu era antes. O meu pai me respeita, me trata como filha dele, mas nossa relação não é a mesma de quando eu era pequena", contou Sofia.

Na escola, as gêmeas encontraram apoio, mas também afrontas. "No ensino médio, o povo da minha sala entendia. Tinha um povo de fora que fazia bullying, principalmente no começo da transição, quando deixei o cabelo crescer", disse. Também havia uma professora que insistia em chamá-la pelo nome de batismo, o que também já aconteceu em um hospital.

"A médica se recusou a me chamar pelo nome. No cartão do SUS [Sistema Único de Saúde], já tinha o nome social, mas ela estava se recusando", relembrou. Neste caso, a mãe dela interveio para defendê-la. Ela tinha 16 anos.

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Se na escola houve dificuldades, no trabalho Sofia teve a identidade reconhecida. "Todo mundo me tratava muito bem, pelo nome social. Ninguém da empresa sabia do meu nome antigo, a não ser o RH e o pessoal que já me conhecia antes", contou.

Ela trabalhou como jovem aprendiz no administrativo de uma empresa de Tapira dos 17 aos 19 anos. Uma semana depois de sair desse trabalho, ela fez a cirurgia em Blumenau.

Atualmente, Sofia estuda engenharia civil em Minas Gerais. Por causa da pandemia da Covid-19, ela nunca foi presencialmente na universidade. "Algumas pessoas sabem e outras não", disse.

Sofia Albuquerck (à esquerda) com a irmã, Mayla Phoebe de Rezende — Foto: Nadson de Souza/Divulgação

Ela também encontrou respeito nos relacionamentos amorosos. "Eu comecei a namorar com 18 anos. Ele super aceitou, me reconheceu como eu sou na verdade. Infelizmente não deu certo", contou.

Sobre isso, ela aconselha sempre a honestidade com o parceiro.

"Eu acho que é super essencial. Às vezes as pessoas pensam 'eu vou fazer cirurgia, não preciso contar'. Fazendo isso, vai estar se enganando, não vai estar sendo sincera com você mesma, vai sempre ficar medo de ele descobrir", afirmou.

"Eu acho certo contar. Não precisa ser no primeiro encontro. Não sabe se vai dar certo num primeiro encontro. Mas, a hora que se sentir à vontade, conta para ele", aconselhou.

Sobre a visibilidade trans, ela acredita que está melhorando. "Hoje a gente tem mais conteúdo sobre isso. Antigamente, nem poderia fazer a cirurgia com 18 anos. Fiz com 19, já tenho meu nome social. Mas o sistema não é perfeito, tem várias brechas", afirmou.

Ela acredita que é preciso que tenha mais acesso às cirurgias de readequação de sexo via SUS e melhor educação sexual aos jovens. "A escola não ensina a respeitar o próximo. Existe homem que só gosta de homem, mulher que só gosta de mulher, isso é normal", disse.

'Você não está sozinho'

Se a família de Sofia e Mayla viram através de um celular que as irmãs eram diferentes de alguma forma, a disponibilidade de tecnologia e informação não era a mesma para as pessoas trans que se descobriram há algumas décadas atrás.

DJ Lirous K'yo Fonseca Ávila — Foto: Tiago Ghizoni/NSC

Lirous contou um pouco sobre o próprio processo de autoconhecimento.

"Foi uma época sem muita informação. Era aquilo que eu conseguia visualizar nas esquinas, na TV, que até hoje ainda é estereotipado. Tive uma criação extremamente religiosa, isso dificultou de eu ter acesso a essas informações [sobre transexualidade]", relatou.

"Após os meus 10 anos, vi que há uma grande diferença de eu me relacionar. Não tinha representatividade por letrinhas, então primeiro me defini como gay, para depois entender que sou trans. A caixinha do gay não me enquadrava, não me definia de verdade", continuou.

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Com isso, ela precisou "sair do armário" duas vezes para a família. "Me assumi quanto gay. Depois, tive que explicar 'olha não sou gay, é diferente'. São conversas bem difíceis, bem doloridas, principalmente com famílias religiosas", disse.

Apesar das dificuldades iniciais, Lirous teve o apoio dos pais, do qual precisou quando se mudou do Rio Grande do Sul para Florianópolis. No mercado de trabalho, ela enfrentou preconceitos.

"Preciso estudar três vezes mais, mostrar que meu trabalho é excelente. É muito gratificante, mas, por outro lado, qualquer erro não é falado da mesma forma, sempre apontam “é a travesti”, sou desqualificada [pelos outros]", relatou.

No ativismo e trabalho voluntário, Lirous encontrou uma forma de ajudar outras pessoas LGBTQIA+. "Não queria que ninguém passasse por tudo o que eu passei", disse. Ela é coordenadora-geral da Associação em Defesa dos Direitos Humanos (Adeh), em Florianópolis, e assistente social.

"Não sei fazer outra coisa, está muito intrínseco em mim. Ajudamos pessoas de maior vulnerabilidade social, fazemos acolhimento a vítimas de violência, de todos os cenários possíveis. Temos grupo de psicólogos, assistentes sociais. Fazemos o trabalho de ir até a delegacia, auxiliar no B.O. [boletim de ocorrência], reconhecimento de corpo, comunicação entre pais, família e delegado", afirmou Lirous.

Kelly Vieira Meira, ativista — Foto: Kelly Vieira Meira/Arquivo pessoal

Quem também encontrou felicidade no ativismo foi Kelly Vieira Meira. Além do trabalho no administrativo de uma unidade básica de saúde da Grande Florianópolis, ela é coordenadora-geral da Estrela Guia - Associação em Prol da Cidadania e dos Direitos Sexuais. "Isso me deu vida, a possibilidade de ser cidadã", afirmou.

"Uma forma de existir, resistir e poder gozar a vida. Aprender a se colocar no lugar do outro. Se me tira o chão, tira o chão para todos", disse.

No trabalho, ela encontrou dificuldades, mas afirmou que "acho que a gente tem ganhado espaço". "Sou bem acolhida pelos funcionários. Mas a gente percebe que, para o público, há algo de exótico", disse.

Para quem está se descobrindo como pessoa trans, Lirous aconselha. "Manter a calma. Tentar buscar informações, encontrar outras pessoas como ela, outras instituições, como a Adeh em Floripa. Preparar-se para conversar com pais e familiares. Não se frustar com as dificuldades nos estados, no profissional. Ter foco", disse.

Lirous K'yo Fonseca Ávila dá conselhos para quem está se descobrindo como pessoas trans

Lirous K'yo Fonseca Ávila dá conselhos para quem está se descobrindo como pessoas trans

"Você não está sozinho. É uma condição, não é uma escolha. Vai ter que saber lidar. O preconceito há. Se você se aceita, consegue aliviar o sofrimento", finalizou.

Há diferença entre trans e travesti?

Não há diferenciação entre transgênero, ou transexual, e travesti, disse Lirous.

"É a travesti, não existe o travesti. É uma identidade nacional, só existe no Brasil. O termo é nosso. O termo transexual vem importado", explicou.

"A travesti é um gênero político, principalmente as travestis periféricas", completou Lirous.

Transgênero é a pessoa que se identifica com o gênero oposto ao qual ela nasceu. Não há relação com orientação sexual. — Foto: Alexandre Mauro / G1

País que mais mata transexuais

Apesar dos avanços, ainda há muito preconceito no país em relação a pessoas transgênero. O Brasil mantém a posição de país que mais mata transexuais no mundo, à frente de México e Estados Unidos, segundo dados de novembro de 2021 da ONG Transgender Europe (TGEU).

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O relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (Antra) aponta que, em 2021, 140 pessoas trans foram assassinadas no país, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e 5 homens trans e pessoas transmasculinas.

Como não há um dado oficial sobre o tema, a pesquisa é feita a partir de informações encontradas em órgãos públicos, organizações não-governamentais, reportagens e relatos de pessoas próximas das vítimas

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