Brasil

Negros ocupam menos de um terço das vagas nos cursos de Medicina e buscam suporte em coletivos

Médica da família e uma das idealizadoras do Coletivo Negrex, Monique França relata episódios de racismo na sua prática
Coletivo Negrex reúne mais de 500 estudantes de Medicina e profissionais negros desde 2015 Foto: Divulgação
Coletivo Negrex reúne mais de 500 estudantes de Medicina e profissionais negros desde 2015 Foto: Divulgação

RIO — A médica Monique França, 31 anos, atendia uma idosa no Jacarezinho, região periférica da cidade do Rio, na Zona Norte, quando de repente ouviu a mulher dizer: “Fico muito feliz de ver pessoas como a gente sentadas no lugar em que você está”. A paciente era negra, assim como Monique. A médica de Família e Comunidade não esquece essa frase:

— Chorei muito. Aquela mulher resumiu ali nosso sentimento ao conseguir ocupar espaços que não são aqueles pré-designados para a gente.

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Médica da família e uma das idealizadoras do Coletivo Negrex, Monique França relata episódios de racismo na sua prática Foto: Arquivo pessoal
Médica da família e uma das idealizadoras do Coletivo Negrex, Monique França relata episódios de racismo na sua prática Foto: Arquivo pessoal

Foi para enfrentar o racismo e o classismo que historicamente rondam a Medicina, tida como “profissão de elite”, que Monique e amigos fundaram em 2015 o Coletivo Negrex. O grupo reúne estudantes de Medicina e profissionais negros, funcionando como uma rede de suporte, troca de experiências e de contatos. Hoje, o coletivo soma cerca de 500 membros de vários estados do país.

— O coletivo foi pensado como um espaço de reconhecimento e de apadrinhamento também — destaca Monique. — Não temos médicos nas nossas famílias, não vivemos em um meio social com outros médicos. Então é importante que a gente tenha pessoas a quem recorrer, de quem receber orientação. E se fortalecer psicologicamente. Porque a gente se depara com várias cenas de racismo, e chega uma hora em que cansa ter que se colocar o tempo todo no lugar de quem reclama, reivindica.

Cotas nas universidades viraram o jogo

Em 2018, pela primeira vez, os negros ocuparam a maioria (50,3%) das vagas em instituições de ensino superior da rede pública, de acordo com a pesquisa “Desigualdade Social por Cor ou Raça no Brasil”, divulgada em fins do ano passado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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Entre os fatores que tornaram essa marca possível, segundo o próprio instituto, está uma série de políticas públicas e de ações afirmativas adotadas a partir dos anos 2000, como o sistema de cotas, que reserva vagas em universidades e institutos federais a candidatos de determinados grupos populacionais. O relatório do IBGE também destaca a expansão, na rede privada, dos financiamentos estudantis, como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni).

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No entanto, em cursos mais concorridos, a presença de negros ainda é pequena. Em Medicina, apenas 28,9% dos estudantes se autodeclaram pretos ou pardos, segundo levantamento da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (Semesp). O número é baixo mesmo se comparado a outras profissões de prestígio, como Direito e Engenharias (ambas com 41,8% de estudantes negros, cada uma).

A história de Monique é parecida com a da grande maioria de seus poucos colegas de profissão negros: filha de uma empregada doméstica e um caminhoneiro, ela foi a primeira da família a ter curso superior — e logo em Medicina, a carreira mais disputada. Mas os desafios, relacionados a um racismo estrutural, são frequentes.

— Uma vez, estava fazendo um atendimento junto com uma amiga branca. A acompanhante do paciente parabenizou apenas a minha amiga por estar fazendo Medicina. Presumiu que a futura médica ali era só ela — lembra Monique. — Às vezes, faço uma prescrição, e a pessoa vai a outro médico, branco, para confirmar. Penso “será que não confiou porque sou negra? Porque sou mulher? Porque não passei um milhão de exames?” Os fatores se acumulam.

Foi para conseguir dar mais atenção à população negra e periférica, em geral negligenciada, que ela escolheu ser justamente médica de família.

— Assim consigo dar um retorno da educação que recebi para pessoas que são como eu — diz ela, que é formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).